quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A fome como produto dos mercados

OPINIÃO

Júlio Marques Mota
Depois de termos falado de Tales de Mileto ou de uma história inventada como são todas as histórias, e inventada à volta dos mercados a prazo, mercados físicos ou alternativamente os mercados de papel, os futuros, eis-nos com uma história não imaginada, em que se alguma coisa há a imaginar, é então sobre a leitura que dela se pode depois falar. É uma história terrível, não muito diferente das que acontecem agora e que aconteceram em 2008 com os preços dos produtos alimentares a subirem nas bolsas de mercadorias por efeitos da especulação e com esses títulos a serem vendidos a todos nós como títulos de alta rentabilidade, medida esta rentabilidade indirectamente pelas mortes de fome provocadas. (…)
Trata-se pois de uma história terrível do século XIX, mas podia ser de hoje, onde a ganância dos homens fazia lei, a lembrar os nossos mercados de hoje. Mas dessa vez bem distante, os deuses decidiram estar ao lado dos homens, ajudaram-nos, deram-lhes boas colheitas de trigo e os tubarões dos mercados, por força desse destino criado por todos aqueles que de dia e de noite o trigo ceifaram, por todos aqueles que dia e noite o trigo para Chicago transportaram, os tubarões foram pela força de trabalho colectiva bem esmagados. Imaginem-se milhares de homens a ceifar de noite à luz de lanternas para ganhar a corrida estabelecida contra todos pela especulação, possível porque por esquecimento ou por adesão (?) os deuses de todas as nossas civilizações, deram boas colheitas às gentes daquelas terras e, naquela época, com isso a especulação permitiram vencer. Inimaginável, creio eu.

Mas, muitíssimas vezes, os deuses também se esquecem de nós, os humanos e também dos desumanos que deixam à solta de qualquer travão ético, humanos que por cá andamos às cabeçadas com o que não podemos transformar e que à custa de não sabermos desconstruir o discurso neoliberal e as suas práticas, estamos nelas sempre a cair. Exemplo disso é a especulação desenfreada que nem com a crise por ela estimulada, para não dizer por ela criada, foi estancada, e quanto aos mortos que outrora andou a fazer, que acima referimos, o que se sabe é que o mesmo caminho estará de novo disposta a percorrer sob a alçada dos nossos silêncios, silêncios de cobardia ou de ignorância, talvez.
Disto nos dá conta Esther Vivas 1 quando escreve:
A ameaça de uma nova crise alimentar é já uma realidade. O preço dos alimentos começou a subir para níveis recordes uma vez mais, de acordo com o Índice de Preços da FAO de Fevereiro de 2011, que faz uma análise mensal dos preços globais de um cabaz de bens básicos composto de cereais, óleos de sementes, produtos lácteos, carne e açúcar. (…) Este aumento do custo dos alimentos, especialmente dos cereais básicos, tem sérias consequências para os países do sul com baixos rendimentos e com uma dependência da importação de alimentos, e para milhões de famílias que nesses países dedicam entre 50 e 60% dos seus rendimentos para a compra de bens alimentares, um número que sobe para 80% nos países mais pobres. Nesses países, o aumento do preço dos produtos alimentares torna-os inacessíveis.
Estamo-nos a aproximar de um milhar de milhões de pessoas – uma em cada seis pessoas não tem hoje acesso a uma alimentação adequada. O presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, afirmou que com a actual crise alimentar tem aumentado o número de pessoas que sofrem de fome crónica calculado esse aumento em cerca de 44 milhões. Em 2009, esse número foi ultrapassado, atingindo 1,023 mil milhões de pessoas subnutridas no planeta, um número que desceu ligeiramente em 2010, mas sem regressar aos níveis de antes da crise alimentar e económica de 2008 e 2009.
A crise actual desenrola-se no contexto de uma abundância de produtos alimentares. A produção de alimentos tem-se multiplicado ao longo das três últimas décadas e desde os anos 70, enquanto a população mundial apenas terá duplicado desde então. Ao contrário do que instituições internacionais como a FAO, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio têm andado a dizer, não se trata de um problema de produção, mas sim de um problema de acesso aos alimentos. Estas organizações pretendem que haja um aumento da produção através de uma nova revolução.
1 Esther Vivas, Americas Updater, Vol.9, N.º.13, The Food Crisis Strikes Again, disponível em CIP Americas Program www.cipamericas.org

http://www.asbeiras.pt/2012/01/a-fome-como-produto-dos-mercados/

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