quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

RUI NABEIRO: “Há que ajudar as pessoas no regresso à agricultura”

Luis Lopes e Samuel Alemão
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ontém às 16:48O ano passado foi especial para o "senhor café", que
celebrou 80 anos de vida e meio-século da Delta. Passada tal agitação,
eis uma boa altura para fazer um balanço e olhar o futuro. De
Portugal, do Alentejo e da agricultura. Regressar a ela é imperioso.
Muito já se disse e escreveu sobre Rui Nabeiro, o fundador dos Cafés
Delta, marca que em 2011 comemorou meio-século. Ao homem que, no ano
passado, fez 80 anos todos os encómios já foram dirigidos,
gabando-se-lhe capacidades de gestão, preseverança, arrojo empresarial
e benevolência para com a comunidade. A Universidade de Évora até tem
uma cátedra por ele apadrinhada. Em Campo Maior, onde dá nome a uma
rua e lhe ergueram uma estátua, tudo parece funcionar à sua imagem. De
origens humildes, não se perde em falsas modéstias e sabe a
importância económica e simbólica do império por si criado. O vinho é
uma paixão antiga, corporizada na Adega Mayor, local onde decorreu uma
conversa franca com o comendador, um dos grandes empresários de
Portugal.

Revista de Vinhos (RV): Qual a avaliação que faz à situação económica
e social do país?
Rui Nabeiro (RN): Qualquer pessoa está preocupada. Essa mesma
impressão foi transmitida pelas pessoas que dirigem o país e deixa
apreensivo qualquer um. Mas sou uma pessoa de esperança, de fé, vivi
sempre neste Alentejo, onde a esperança foi sempre relativa, sou um
homem nascido nos anos 30.
RV: Viveu, por isso, situações muito difíceis...
RN: Muitas, muitas. Lembro-me muito bem de como os meus pais viviam e
de como conseguiram manter um rumo. E isso explica-se com o facto de
conseguirem manter a esperança e viver com alguma atitude. Porque, na
altura, as pessoas viviam todas mal. Nesta região, todos trabalhavam
no campo e todos viviam mal, com excepção de uns poucos, que tinham
meios próprios e davam trabalho a outros – e que, no fundo, viviam com
a tal esperança.
RV: Acha que esse é um caminho que se pode voltar a repetir, o de as
pessoas voltarem ao campo?
RN: Todo o mundo fala em se voltar para o campo. Acho que é um sintoma
maravilhoso. Mas há que preparar as pessoas para isso, para o
regresso.
RV: Acha que elas não estão preparadas?
RN: Não, não estão.
RV: E porquê?
RN: Porque foram muitos anos...Primeiro, as pessoas foram demasiado
castigas pelo campo – houve pessoas que viveram anos e anos sem
qualquer esperança, sem um horizonte, e isso marcou-as muito. Quando
lhes abriram a porta ou a janela para saírem desse mundo, todo o mundo
correu. Foi por isso que, em muitas regiões do país e em especial no
Alentejo, nos anos 50, muita gente marchou para as cidades, sobretudo
para Lisboa e os seus arredores. E, na zona Norte, foram para o Porto
e outras cidades médias. Na década seguinte, a saída foi ainda mais
maciça, com a emigração. As regiões ficaram despovoadas.
RV: Acha que, para os filhos desses que emigraram, regressar à
agricultura seria um retrocesso, um andar para trás?
RN: Não, mas acho que, se calhar, não têm a confiança para fazerem uma
coisa diferente. E coloca-se outra questão: como é que o agricultor
recebe essa mão-de-obra? O que é que pensa dessa mão-de-obra? Tudo
isso é uma nova cultura dentro da agricultura. Acho que o agricultor
ainda não está preparado para isso. Terá de haver um trabalho de
comunicação nesse sentido, suportado pelo Estado. Além disso, há as
questões associadas às dificuldades de escoamento dos produtos, que
não são tão simples quanto isso, por serem guiadas pelo mercado. E
depois também há a questão da formação dessas pessoas. Tudo isso tem
que ser pensado.
RV: Acha que existia um conhecimento, uma relação com a terra, que se
foi perdendo?
RN: Sem dúvida. Seremos obrigados a tomar um caminho diferente, mas
não tenho dúvidas nenhumas de que, para encontrá-lo, as dificuldades
serão muitas.
RV: Nos últimos tempos, a agricultura tem sido apresentada quase como
uma tábua de salvação nacional. Concorda com esta ideia?
RN: As pessoas que são mais responsáveis avançam com essa hipótese, a
do regresso à terra e ao mar. Mas tanto um como outro precisam de
máquinas. Veja-se aqui o Alentejo, onde as condições parecem ser a
ideais para o homem e a máquina trabalharem em comum. Mas se as
pessoas estiverem mal, mal....Espero que saibamos fazer vida, que não
sejamos um país derrotado.
RV: Concorda que o Alentejo está ainda a aproveitar numa percentagem
muito baixa as suas potencialidades?
RN: Sem dúvida. Não se está ainda a tirar o rendimento devido das
terras. Temos de pôr as pessoas a trabalhar e investirem na sua terra.
Há muitas forma de investir. É ter meios ou não ter meios, ter as
coisas à sua disposição ou não. Levámos muitos e bons anos a viver de
coisas mais fáceis. Além dos créditos, estou a falar do dinheiro que
se dava para não produzir. E isso criou todo um conjunto de
circunstâncias, que hoje não é fácil ultrapassá-las. Não há dúvida que
o campo, e não só no Alentejo, terá que ser trabalhado. Terá que haver
equipas, terá que haver um pouco de associativismo puro...
RV: Reforma agrária?
RN: Não. Eu não sou contra a reforma agrária, mas sou contra a
paridade. Sou a favor da evolução do tempo e da evolução da capacidade
do homem. A reforma agrária já deu provas de que não pegou por aqui. E
não pegou por causa dessa circunstância. Pessoas que já tenham viajado
um pouco percebem que ela não funciona, como também não funciona
verdadeiramente o capitalismo. Ao fim e ao cabo, são circunstâncias
muito parecidas. Um desmoronou-se e outro vai no mesmo caminho.
RV: Acredita que se aplica aqui aquele provérbio "a necessidade aguça
o engenho"? Ou seja: teremos força para sair daqui mais fortes?
RN: Acho que sim. Julgo que o homem tem que aproveitar coisas que a
evolução técnica proporcionou. O homem já não será escravo, como foi,
porque a alta tecnologia avançou. Nos anos 30, a que já me referi, a
força tecnológica era a do homem e das suas mãos. Hoje, claro, é tudo
diferente. Penso que, se soubermos aproveitar as capacidades que a
tecnologia nos oferece, poderemos dar uma volta muito grande ao
probema e não precisarmos mais de ir ao exterior buscar aquilo que
comemos.
RV: Uma das coisas que já está à nossa disposição é a Barragem do
Alqueva. Acha que estamos a saber aproveitá-la tão bem quanto os
espanhóis?
RN: Não. É que há uma grande diferença entre os espanhóis e os
portugueses: eles nunca deixaram de produzir. Os espanhóis andavam
também muito ligados a esquemas semelhamtes aos nossos, mas eles
produziram sempre mais.
RV: Basta ir à Extremadura espanhola...
RN: Sim, e na Andaluzia, ainda com mais actividade. E se formos a
províncias do centro e do norte, também vemos aí um aproveitamento
total. Eles semeiam os terrenos até às portas das cidades. Seja trigo
ou cevada, estão lá. Souberam aproveitar a tecnologia. Teremos de
fazer o mesmo, pois somos tão nobres e tão trabalhadores como os
outros.
RV: Qual o papel que o vinho pode desempenhar nesse ressurgimento agrário?
RN: Não sou um especialista nessa matéria, mas acho que para termos
sucesso teremos não apenas que produzir bem – o que julgo estar a
acontecer -, mas também de produzir em quantidade. Penso que o vinho
tem muito para dar, a uvas têm muito para dar. Não podemos estar mais
tempo a consumir uva que venha do estrangeiro, com os muitos terrenos
que temos à disposição. Muitos produtores fazem a vindima e, passados
três meses, estão a importar quantidades massivas de uva.
RV: Como pensa que se poderá promover mais a produção nacional?
RN: Teremos que ter um Ministério da Agricultura forte, conhecedor e
sabedor, temos que ter associações fortes e capazes. Mas tudo isso se
constrói com o tempo, porque experiência e sabedoria existem no país.
Temos bons técnicos e engenheiros, até nas direcções regionais de
agricultura.
RV: Mas explique-nos porque razão decidiu, após ter criado o império
Delta, avançar para a produção de vinho.
RN: Gostei sempre do campo. E aqui sempre existiu a tradição de os
terrenos baldios serem divididos e entregues às pessoas, em que uma
parte era para a produção de trigo e cevada e a outra era para olival
e vinha. E isso tocou a todos os habitantes da terra. Uns mantiveram e
outros venderam. Toda a gente ia para a adega fazer vinho. Além disso,
havia também uma indústria de produção de talhas para o vinho. Mas,
gradualmente, foi-se perdendo essa tradição, que mexia comigo em
miúdo. Até desaparecer, aí por volta dos anos 60 ou 70. Sempre sonhei
em poder imitar um dos meus avós e fazer um pouco de vinho. Comprei
esta propriedade, em meados dos anos 60, e pensei que seria um bom
local para aqui plantar um vinha. E isso fez-se. Primeiro, era uma
área pequenina, depois foi crescendo. Sempre sonhei que a adega seria
neste local onde é agora.
RV: Está satisfeito com a dimensão actual do projecto e com o
crescimento que ele tem tido?
RN: Estou. Já temos aqui um grupo de pessoas a trabalhar com uma certa
dimensão. Mas estou consciente que também não estamos a atravessar uma
época fácil. Bem, a questão é que não sei quantos anos mais irei viver
e como isto irá evoluir. Tenho uma neta (Rita Nabeiro, administradora
da Adega Mayor), que está connosco, é entusiasta e trabalhadora. Tenho
muita confiança nela, nos meus netos e nos meus filhos. Estou a fazer
81 anos, não posso sonhar comigo, tenho é que sonhar com os
outros...(risos)... Mas, com eles, sonho já com muita tranquilidade.
RV: A marca que hostenta na lapela (pin da Delta) atingiu o
meio-século, em 2011. Acha expectável que, dentro de 50 anos, a Adega
Mayor e os vinhos por ela produzidos venham a ter uma notoriedade de
alguma forma semelhante à que os cafés Delta têm neste momento?
RN: Não é muito fácil, embora gostasse. E não é fácil porque a
dimensão dos cafés Delta é ímpar - veio do zero e cresceu
passo-a-passo. Estes 50 anos já passaram, foram vividos com conquistas
milímetro-a-milímetro, com atitude e correndo riscos. O mundo moderno
vive com mais objectividade. Mesmo os meus filhos vivem de forma
diferente.
RV: Alguma vez imaginou chegar onde chegou?
RN: Não, não, penso que ninguém pode sonhar com aquilo que não
conhece. Imaginar, talvez. Agora, dizer "faço, quero fazer, eu não
durmo, não vou descansar", isso fazia-o todos os dias. Isso é que fez
com chegássemos aqui. Eu descansava pouco e ainda é assim.
RV: "Quase não tive infância. Não fiz outra coisa senão trabalhar",
disse um dia. Muitos jovens chegam aos 30 anos, a chamada "geração à
rasca", e nem conseguem sair da alçada dos pais. As novas gerações têm
medo ou não gostam de trabalhar?
RN: Não. Eu tenho todos os dias uma relação muito grande com a
juventude. Toda a gente tem algo na vida que lhe serve de referência.
Eu tive um grande pai e uma mãe extraordinária, mas tive também um
tio, o Joaquim Nabeiro – mais conhecido por Joaquim d'Olaia -, que era
um fora de série. Todos os dias, falo nele. Ele, aos 13 anos, já tinha
saído de casa dos pais. O pai queria que ele fosse trabalhar para o
campo e ele não queria. Disse "não vou servir lavrador nenhum" e
começou a ir para Espanha. Cresceu e viveu sempre com a vida de
Espanha e daquilo que transportava para cá. Segui-lhe sempre as
pisadas. Ele não tinha filhos, mas havia uma pessoa por quem tinha um
especial afecto, porque era aquele que melhor escondia as coisas, e
era eu. Esse homem deu-me formas, imagens e exemplos. E trabalhou até
morrer.
RV: Acha que a nova geração está mentalizada para fazer tais sacrifícios?
RN: Dos meus, digo que sim. Tenho quatro netos e sei o que valem. E
dos outros também digo que sim. Ainda agora, entrou para aqui um grupo
de moços com pouco mais de 20 anos. E têm a visão de como se chega ao
trabalho. Agora, também há muitas facilidades. Por exemplo, até eu
casar, aos 23 anos, o salário que eu ganhava era para a minha mãe.
Hoje é diferente, a vida já não é feita em conjunto. Muito há a fazer
ao nível da governação e da família no sentido de fazer ver que, em
conjunto, se gere muito melhor do que separadamente.
RV: É possível mobilizar esses jovens para trabalharem a bem do país,
em vez de se lhes pedir para emigrarem?
RN: Quem o disse já deve ter pensado que foi uma coisa infeliz. Porque
as pessoas, quando precisam, vão por elas próprias, não precisam que
ninguém lhes diga para irem. Foi uma mensagem que não foi feliz e que
não deu esperança, quando, neste momento, é o que o país mais precisa.
Temos que estar preparados para trabalhar mais, melhor e para
partilhar com os que precisam, que até podem vir a ser os que estão
perto de nós.
RV: O senhor tem sido apontado como um caso exemplar de alguém que se
preocupa com a comunidade, sobretudo com Campo Maior...
RN: Dizê-lo eu não é fácil. Mas é, de facto, uma das minhas
preocupações. Se estou bem, quero que os outros também estejam. Nasci
aqui, estou aqui, mas por onde vamos passando, não há quem não veja
que somos diferentes. Somos de Campo Maior, mas temos 21 departamentos
espalhados pelo país e mesmo em Espanha.
RV: O que é que significa para si esta terra?
RN: Tudo. Foi onde nasceram os meus pais, onde nasceu a minha família
toda, onde sou muito bem tratado pelas pessoas, mas eu ainda as trato
melhor.
RV: Certamente que as pessoas de Campo Maior têm orgulho em ter uma
empresa desta dimensão sedeada na sua terra. Sente que o regressar da
produção de vinho, com a Adega Mayor, é também motivo de orgulho?
RN: É, sim. Há orgulho e cada dia mais. Muita gente até vem mostrar a
adega, de cada vez que recebe visitas.
RV: Como acha que será recordado dentro de 50 anos?
RN: Se eu acabar bem, até ao final da minha vida, talvez venha a ser
recordado todos os dias. Porque existem motivos para isso. Não há
ninguém em Campo Maior que não tenha um familiar a trabalhar aqui.
RV: Essa gratitude até já foi demonstrada, através do batismo de uma
rua com o seu nome e erigindo-lhe uma estátua. Como é que vê essas
homenagens?
RN: O ano que passou foi cheio delas. São de uma felicidade grande e
de uma responsabilidade enorme. Uma pessoa não pode errar, tem de
andar certa, tem de medir as suas atitudes.
RV: Vindo o senhor de um meio humilde, não fica desconfortável com uma
certa veneração que, por vezes, lhe fazem?
RN: Não, porque eu sou o primeiro a tratar bem. Recebo das pessoas uma
resposta recíproca. Há carinho, sem ser exuberante. Nem eu permitiria
que se fizesse tal veneração. Posso ser para algumas pessoas o "Senhor
Comendador", mas o nome que me cai bem e pelo qual sou aqui chamado é
"Senhor Rui".
RV: Com os cafés Delta, ajudou a consolidar uma tradição muito
portuguesa de ir beber o café à esquina. Não teme que esta moda das
máquinas de café em casa, à qual a Delta também se juntou, venha a
desvirtuar esta tradição de convívio?
RN: Não...talvez possa é vir a tirar gente aos centros
comerciais...(risos)...a vida na sociedade em geral deve ser feita em
convívio. E esse convívio de casa é maravilhoso. Com os centros
comerciais e a televisão, deixámos de ter muitas coisas, muitas
mais-valias, que a família e a sociedade tanto precisam. Isto é um
produto que tem a sua quota de mercado e está vender bem, mas não
atropelará o hábito de se ir beber café ao café da esquina. É verdade
que o segmento de mercado Horeca (hotelaria, restauração e cafetaria)
tem descido um pouco, mas tem sido largamente compensado pelas
cápsulas, que têm conquistado até mais espaço a sucedâneos como a
cevada e a chicória, que vão cedendo. Mas o consumo de café, mesmo com
esta crise, tem vindo a crescer.
http://www.revistadevinhos.iol.pt/noticias/%E2%80%9Cha_que_ajudar_as_pessoas_no_regresso_a_agricultura%E2%80%9D_11019

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