domingo, 13 de maio de 2012

Era uma cerveja se faz favor

Bebidas

António Freitas de Sousa
13/05/12 11:05

Pedir uma cerveja é tão natural como ter sede. Uma naturalidade
repetida tantas vezes, que as cervejeiras são colossos empresariais.

Vivemos com ela há mais de seis mil anos: a cerveja foi uma das
primeiras bebidas alcoólicas a serem criadas pelo homem e, a par do
vinho - e de alguns produtos vegetais - foi sempre de utilização quase
medicinal no capítulo da distensão muscular e do alheamento
circunstancial. Nem sempre foi um produto bem aceite: chegou a ser a
bebida dos rufiões e das classes mais pobres nas primeiras décadas da
Revolução Industrial e, até há bem pouco tempo, ninguém que prezasse a
sua imagem social cometia o dislate de acompanhar com uma cerveja um
almoço ou um jantar em público. Apesar disso, nunca deixou de ser
fabricada, de ser estudada e de ser uma fonte de investigação e de
inovação. Só faltava ser também uma fonte líquida de grandes lucros.
Agora, também já é.


A cerveja que se bebe actualmente - chamada 'lager' e que surgiu
apenas no século XVI - é o resultado de um processo longo de maturação
científica que teve um forte impulso na Idade Média e criou uma
economia particular: as fábricas de cerveja foram durante séculos um
negócio local e de pequena dimensão, como se fosse o produto
alquimista de umas panelas ao lume e de umas sementes a tostar, que
permaneciam escondidas na parte de trás dos cafés.

Tudo isso passou à história: a maior cervejeira da Europa factura
anualmente mais ou menos o mesmo que o conjunto formado pela GALP,
EDP, Sonae MC, Pingo Doce, TAP, PT, TMN e BP Portugal (as oito maiores
empresas nacionais); a facturação agregada das quatro maiores empresas
europeias do sector corresponde a mais de 40% do PIB português; e é
apenas um pouco menor que os 78 mil milhões que o país passou a dever
de uma só vez a três credores, algures no inverno (ou inferno)
passado.

O mercado nacional de cervejas é bem o espelho da concorrência feroz
que se faz sentir entre os monstros da cerveja - que agora também são
de outras bebidas: Heineken (dona da Sociedade Central de Cervejas,
SC, e da Sagres) e Carlsberg (dona da Unicer e da Super Bock) dividem
o mercado cervejeiro doméstico entre si de forma quase milimétrica,
deixando de fora qualquer hipótese de um terceiro operador ter vida
farta nas fraldas do negócio - como, para mal dos pecados dele, o
empresário Sousa Sintra veio a descobrir da forma mais dramática.

Mas não nos enganemos: o mercado português é meramente residual no
'portfolio' das cervejeiras internacionais, com a SC e a Unicer a
agregarem um volume de negócios a esbarrar nos 900 milhões de euros.
Uma minudência. Talvez por isso - ou ao menos também por isso - as
duas maiores empresas de cerveja da Europa nem sequer se dão ao
trabalho de ter presença que se veja em Portugal: AB InBev e SAB
Miller nunca quiseram passar de Vilar Formoso - se se der o caso
improvável de saberem onde isso fica.

Carlsberg e Heineken são mais simpáticas com as suas participadas
nacionais - tanto mais que SC e Unicer têm vindo a 'alombar' com o
grosso do esforço (de investimento, de neurónios e principalmente de
paciência) de diversificação para o auspicioso mas ainda não
confirmado mercado angolano. Para culminar esta simpatia, a Heineken
veio retirar o seu CEO nacional, Alberto da Ponte, da sua zona de
conforto mais próxima, propondo-lhe uma viagem de ida e com regresso
apenas intermitente para Amsterdão, para tomar conta dos mercados da
Europa de Leste. O que se segue é um esboço desfocado da fotografia do
sector e uma radiografia pouco ampla das relações entre os maiores
operadores do mercado europeu.

Concentrações em força
Há talvez duas décadas que as cervejeiras mundiais entraram em força
no capítulo das fusões e aquisições. E não apenas nos segmentos médios
ou baixos do mercado: essa estratégia ocorreu principalmente no topo
do ranking mundial. A maior cervejeira do mundo, a AB InBev é disso o
exemplo mais acabado. Começou com uma mega fusão, em 2004, entre a
belga Interbrew e a brasileira AmBev. Mas Carlos Brito, o brasileiro
que passou de CEO da AmBev para CEO da 'fusionada' InBev - depois de
diplomaticamente (ou talvez não) ter mandado calar o lado belga do
negócio - não tinha a certeza de liderar o mercado mundial.

Por isso arranjou forma de deixar de ter dúvidas: depois da mega fusão
com os belgas, engendrou uma super-mega-fusão (via OPA mais ou menos
não-hostil) com a norte-americana Anheuser-Busch - dona da emblemática
Budweiser e onde Warren Buffet pontificava como um dos principais
accionistas. Foi a fusão (em 2008) entre a primeira e a terceira
maiores cervejeiras do mundo - que, até agora, deixou sem resposta a
maior concorrente, a SAB Miller. A família Anheuser-Busch ainda
barafustou, mas Buffet não esteve para alinhar em dramas familiares:
apoiou a fusão desde a primeira hora e arrecadou parte dos 32,6 mil
milhões de euros que a AmBev pagou para ficar com a Budweiser. E para
se transformar na AG InBev.

Mais de 60% do volume de negócios (um total de 29,75 mil milhões de
euros em 2011) é da responsabilidade do mercado norte e
sul-americanos. A Europa representa apenas 14,1% e, tal como Portugal,
a África não faz parte do seu 'portfolio'.

Relegada para segundo plano, a britânica SAB Miller - de ascendência
sul-africana - ainda não respondeu à altura desta mega-fusão. Em 2008,
os seus responsáveis permitiram que o mercado especulasse sobre uma
eventual fusão com a norte-americana Molson Coors (que faz parte do
Top Ten mundial), e assinalaram que estavam a olhar para a aquisição
da britânica Scottish & Newcastle (S&N). Nada feito: a última compra
de vulto da SAB Miller ocorreu em 2006 - quando 'oparam' amigavelmente
a holandesa Grolsch. De resto, a Molson continua intacta e a S&N foi
deglutida 'a meias' entre a Heineken e a Carlsberg que, neste negócio
específico, nem pareciam concorrentes directos.

Em termos de mercados, a SAB Miller (que facturou 21,57 mil milhões de
euros em 2011) tem um forte pé na Europa (20%), mas também na Ásia
(24%), nas Américas (37%) e em África - onde a posição directa é fraca
(7%), mas em cuja maioria dos mercados conta com uma aliança
estratégica com a Castel Group - de um francês chamado Pierre Castel,
filho de emigrantes espanhóis e detentor de mais de 40 unidades fabris
naquele continente. Ou seja: ninguém produz uma pinga de cerveja em
África se o Sr. Castel (e já agora a SAB Miller) não estiver para aí
virado - como bem sabem, aliás, tanto a Unicer como a SC.

No terceiro lugar do 'ranking' europeu está a Heineken (facturou 17,12
mil milhões de euros em 2011), aonde Alberto da Ponte foi parar depois
de a cervejeira holandesa ter ficado com a parte de leão da S&N (que
detinha 100% da Central de Cervejas). O seu ambiente natural é a
Europa, mas a Heineken acha duas coisas: que o mercado da cerveja está
maduro e estagnado na maioria dos países do continente; e que a Europa
não está propriamente a enriquecer e/ou a rejuvenescer. E também sabe
que os europeus adoram vinho. Por outras palavras, quer isto dizer que
a Europa não é mercado para grandes futuros. Já a Europa de Leste,
acreditam os seus responsáveis, é completamente diferente: o potencial
de mercado é enorme.

O problema é que a Carlsberg (que facturou 'apenas' 8,5 mil milhões de
euros em 2011) acha precisamente a mesma coisa que a Heineken - no
que, aliás são seguidas pelo que acha a SAB Miller: a Rússia parece
ser o mercado de todas as apostas. Só falta o mercado russo achar o
mesmo. Há alguns meses, uma visita a várias lojas, supermercados e
cafés de São Petersburgo permitiu ao Diário Económico concluir que os
russos bebem tanta cerveja como bebem água: quase não lhe tocam.

Seja como for, esta será a grande preocupação de Alberto da Ponte para
os próximos anos. Ou meses. Ou talvez mesmo semanas: é que há outra
preocupação no horizonte das maiores cervejeiras do mundo: a EDP. Bom,
não será bem a EDP, mas os chineses: entre as dez maiores cervejeiras
do mundo encontram-se três grupos chineses - que já tiveram até o
desplante, um deles, de ultrapassar a Carlsberg (em volume, em 2006 e
2007). É certo que a produção para o mercado interno chega, às
cervejeiras chinesas, para atingir o topo mundial; mas ninguém no
sector acredita que se mantenham muito tempo quietas no seu cantinho.

http://economico.sapo.pt/noticias/era-uma-cerveja-se-faz-favor_144309.html

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