quarta-feira, 6 de junho de 2012

Está na moda ser enólogo

Por Carla Amaro
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São jovens, recém-saídos da Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro, a única em Portugal com uma licenciatura em Enologia. Quiseram
ser enólogos antes de a profissão ser uma moda e tema recorrente em
jornais e programas de televisão. Fazer vinho, para eles, é uma paixão
que despertou quando ainda eram crianças.

O primeiro dia de Ivo Soares, 25 anos, e de Mário Costa, 23 anos, na
Quinta Seara D'Ordens, em Poiares, sessenta hectares de vinha a poucos
quilómetros de Peso da Régua, não foi a pôr em prática o que haviam
aprendido nos quatro anos do curso de Enologia. Foi a «lavar cubas» e
a «passar o vinho a limpo, tirando-o de uma cuba para outra». Acabados
de sair da UTAD, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a única
em Portugal com licenciatura em Enologia, estes futuros enólogos
sentiram-se «gratos» por terem conseguido logo um estágio
profissional, ao contrário de muitos da turma que, ainda hoje, um ano
após a conclusão do curso, não encontraram semelhante sorte.


Ivo procurou trabalho nos «canais habituais», «em sites», não
demorando muito a achar a vaga na Seara D'Ordens, de onde saem
premiadas marcas de vinhos de mesa do Douro e de vinho do porto. A
vaga era para um, mas Mário candidatou-se na mesma altura e também
ficou. «Não estava à espera de começar logo a trabalhar, porque é
difícil. Esta profissão está a tornar-se moda, mas não há assim tantas
quintas produtoras para colocar todos os recém-formados». Com a crise,
o setor da produção de vinho estagnou, mas a fornada de vinte alunos
em média que todos os anos terminam a licenciatura na UTAD - fora os
que tiram cursos profissionais na mesma área -, chega ao mercado de
trabalho e nem sempre o encontra de portas abertas.

Ivo e Mário já conhecem de fio a pavio os sessenta hectares de vinha
da Seara D'Ordens, cuja produção anual ronda as 350 mil garrafas, mas
o seu desempenho está longe de se confinar à arte de fazer vinho. Sim,
«fazer vinho é uma arte», sublinha Ivo, enquanto percorre, de copo na
mão, uma das adegas, onde o vinho está em fermentação. Abre a torneira
de uma cuba, enche o fundo do copo e leva-o aos lábios: «Fazemos
provas todos os dias para saber como o vinho está a evoluir. E fazemos
outras coisas, nomeadamente o que em algumas empresas, maiores do que
esta, corresponde ao trabalho do adegueiro.» Lavar cubas, por exemplo.
Mas isso não os humilha. Pelo contrário, consideram a polivalência
«uma mais-valia». Ivo justifica: «Saímos da faculdade com muita
teoria. A teoria é importante, mas aqui, no terreno, aprendemos que
para saber mandar é preciso saber fazer. Aqui, todo o processo passa
pelas mãos dos enólogos. Da uva à garrafa.» O exemplo vem de cima, do
patrão António Moreira, um dos sócios da Seara D'Ordens e enólogo
principal da quinta. «Ele próprio faz questão de acompanhar todos os
departamentos. No fundo, ele é que é o nosso verdadeiro professor.»
Mário admite preferências: «Gosto daquela coisa de ir à cuba, provar o
vinho, corrigi-lo se for necessário, recolher amostras, levá-las para
analisar, aferir os níveis de oxidação e as quantidades de açúcar.» Do
portfólio «bastante alargado» de produtos Seara D'Ordens há um vinho
novo feito com o contributo de Ivo e Mário. Chama-se Quinta do
Carcajal Rosé, é «bastante aromático e fresco», está no mercado desde
Janeiro deste ano.

A experiência de nove meses destes jovens nesta quinta em pleno Douro
vinhateiro está a ser «enriquecedora», mas os seus sonhos a longo
prazo não passam por um emprego. Ivo gostaria de regressar à terra
onde nasceu, em Sobreira, Paredes (a 25 quilómetros do Porto), onde a
família tem uma pequena parcela com vinha. «Os meus pais sempre
fizeram vinho e até não é mau, porque compradores não lhe faltam, mas
fazem-no de acordo com o que a natureza lhes vai permitindo. Com os
meus conhecimentos em enologia poderei contribuir para o seu
melhoramento. Essa é a mais-valia da enologia: trabalha o natural,
acrescenta-lhe qualidade.» O mesmo sonho tem Mário, que quer agarrar
nos 2,5 hectares de vinha que a família tem, em Torre de Moncorvo, e
«aplicar o que até lá a experiência lhe ensinar». Os pais sempre
produziram vinho tinto maduro «para autoconsumo», sem marca, caseiro.
Ele quer mudar isso. Quer introduzir castas de qualidade, «como a
Sauvignon Blanc e a Malvasia Fina para os brancos, a Touriga Nacional,
a Tinta Roriz e a Tinta Barroca para os tintos». Quer criar uma marca
própria, talvez com o nome «Quinta de Baixo», e quer lançá-la no
mercado.A ambição não é escassa entre os recém-formados enólogos.
Talvez porque esta seja uma área desafiante. Elisabete Silva, 23 anos,
em estágio profissional na Quinta da Carregosa, em Tabuaço, bem no
coração da Região Demarcada do Alto Douro Vinhateiro também tem sonhos
grandes. «Hei-de comprar uma quinta pequena, nesta região, para fazer
as minhas experiências na produção de vinhos generosos e de grandes
reservas DOC. Gostava de conseguir fazer bons vinhos do porto».
Elisabete é da Régua. Ao contrário de Ivo e Mário, só faz trabalho de
enólogo. Ainda que esteja a dar os primeiros passos, já é evidente a
desenvoltura com que se mexe num ambiente «ainda muito dominado por
homens». Está-lhe no sangue. O avô paterno era adegueiro na Real
Companhia Velha e o avô materno era caseiro numa quinta com vinha, na
Régua. Foi este que a inspirou na altura de escolher a profissão.
«Aproveitava todas as oportunidades para o acompanhar nos trabalhos da
vinha. Adorava. Ficava encantada com tudo o que ele fazia. Era criança
quando aprendi com esse meu avô a podar à moda antiga. Hoje já não se
poda da mesma maneira, utilizam-se técnicas modernas.»


Do trabalho, o que mais aprecia é «fazer os lotes». Traduzindo: «Vou
buscar um pouco de vinho a cubas diferentes e misturo-os. O lote é
isso, é o vinho obtido pela mistura homogeneizada de dois ou mais
vinhos.» O que faz no laboratório também lhe agrada. De bata branca,
rodeada de pipetas e outros utensílios de vidro de diferentes formas e
tamanhos, analisa as amostras que o adegueiro há pouco recolheu de
várias cubas, para aferir os níveis de determinados parâmetros como «a
solução, o dióxido de enxofre, o pH, a acidez volátil, o álcool, o
volume da borra». Este processo exige-lhe que prove o vinho, pois só
assim pode «verificar os tipos de cola proteica». Se necessário,
procede também à colagem, na qual utiliza «produtos extraídos da
natureza, que aplica no vinho para conseguir limpar a carga fenal em
excesso». Esses produtos naturais podem ser, por exemplo, a argila, a
cola de peixe, a caseína, «que acabam por decantar», quer dizer,
acabam por separar-se do vinho. Em Fevereiro último foi lançada no
mercado uma novidade, o Quinta da Carregosa branco 2011, que Elisabete
ajudou a fazer. «É o meu bebé. Dei muito de mim. As minhas opiniões
foram levadas em conta pelo enólogos. Sugeri um processo diferente do
habitual.» Elisabete prova o vinho: «É um bom vinho. É suave, mas não
é para todos os gostos, é diferente, é mineral, aromático, tem uma
frescura intensa. Acompanha bem pratos mais fortes, um bacalhau, por
exemplo. Espero que conquiste os consumidores.»

Antes de chegar à Carregosa, em Fevereiro de 2011, Elisabete estagiou
nas Caves Taylor, no Porto, onde acompanhou o «envelhecimento do vinho
do porto em barricas» e o engarrafamento. Mas durante o curso, na
UTAD, fez vindimas, uma por ano - a primeira foi na Symington Family
States, nos dois anos seguintes na Quinta Nova, do Grupo Amorim, e no
quarto ano na Quinta do Valado, todas na Região Demarcada do Douro.
Participar numa vindima não é colher uvas, no seu caso. «O trabalho de
um enólogo numa vindima consiste, por exemplo, no controlo
fermentativo e na realização de análises sensoriais e químicas.»

Quem já colheu muitas uvas foi Rui Viana, 24 anos. A recordação do
tempo em que vindimava no quintal dos pais foi o impulso que o levou a
seguir o caminho da enologia. «Era muito feliz nessa altura, em Viana
do Castelo. Tínhamos uma vinha pequena, no quintal, onde também havia
uma dorna, um pequeno lagar de madeira. A coisa terminava com um
almoço. Quando chegou o momento de escolher o curso, eu sabia
exatamente o que queria ser. Entrei em 2006 e dois anos antes já
andava a pensar em ser enólogo. Procurei toda a informação disponível,
em livros, na internet, e quando estava a ler, lembro-me, vinha-me à
memória essa felicidade que sentia. Então pensei: Se isso me fazia
feliz, porque não optar por uma profissão ligada ao vinho?»


Assim que terminou a licenciatura, Rui também não teve dificuldade em
conseguir trabalho, ainda que em regime de estágio profissional.
Durante nove meses foi como se estivesse a ser avaliado diariamente na
Sociedade Roncão Pequeno (SRP), em Sabrosa, Vila Real. «Não sei se
estavam de olho sempre em mim, mas era assim que me sentia, talvez por
causa da minha inexperiência.» As suas capacidades convenceram os
patrões, a família Vieira de Sousa, e, terminado o estágio, Rui ficou.
É o único enólogo residente da Roncão Pequeno, tendo a seu cargo os
vinhos das quatro quintas pertencentes à Sociedade, todas na região de
Trás-os-Montes e Alto Douro: a Quinta Vilarinho de Quotas e a Quinta
do Fojo, em Alijó, a Quinta da Fonte, em Celeirós, e a Quinta de
Agualta, em Sabrosa.

As castas Tinta Roriz, Touriga Nacional, Touriga Franca e Barroca,
com que trabalha para produzir os três vinhos do porto (Vieira de
Sousa Vintage, Vieira de Sousa Porto 10 anos Tinto e Vieira de Sousa
Porto 10 anos Branco) e o único vinho de mesa da Sociedade (Espiral),
são as castas com que quer trabalhar «um dia, quando tiver a minha
própria quinta, para produzir os meus próprios vinhos». Para este
jovem enólogo, «é um orgulho enorme» trabalhar numa empresa que,
apesar de recente (surgiu apenas em 2008), pertence a uma família
produtora de vinho do porto há mais de duzentos anos. Mostra uma
fotografia que tem no telemóvel: «Isto é um rótulo de uma garrafa de
1875. Está a ver a data? Mais tarde, no tempo da filoxera [praga da
videira], os Vieira de Sousa tiveram de vender parte das vinhas e a
própria marca Vieira da Silva. Só há pouco tempo é que a recuperou.» O
passo seguinte, espera, é deixar de vender parte significativa das
uvas a outros produtores e utilizá-las todas na produção dos vinhos da
casa. «Temos feito pouca quantidade de vinhos do porto, dez pipas em
2011. Isso corresponde a pouco mais de 7300 garrafas.»

O vinho há muito que deixou de ser um produto indiferenciado, muitas
vezes vendido a granel, para passar a ter especificidade conforme a
região, a casta, o ano...Passou a ser um produto que despertou na
sociedade hábitos de consumo diferentes, mais exigentes. Passou também
a associar-se mais à região de produção, às práticas de cultivo
tradicionais e à cultura local. É por isso natural que, associado aos
vinhos com identidade, esteja a assinatura de quem os faz: os
enólogos. Esse é o sonho de Rui, Elisabete, Mário e Ivo. O sonho deles
é ter um pedaço de terra com vinha para poderem fazer o seu próprio
vinho. Com assinatura. Doutor ou técnico?Em Portugal, só a
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) tem licenciatura em
Enologia. No ano em que o curso foi criado, em 1989, inscreveram-se
trinta alunos. Desde então, a procura tem sido variável, mas esse
continua a ser o número de vagas anuais disponíveis. Neste momento, a
UTAD tem 150 futuros enólogos. De norte a sul do país, não faltam
entidades promotoras de cursos técnicos na área, o que levanta a
questão: qual é a mais-valia da licenciatura? Vicente Seixas e Sousa,
diretor do curso de licenciatura em Enologia da UTAD, não tem dúvidas:
«Não ensina apenas as técnicas enológicas, explica também a razão dos
procedimentos a adotar. Para além das matérias relacionadas com o
fabrico do vinho, tem uma forte componente agronómica-vitícola, porque
o vinho começa na vinha e a qualidade das uvas determina a qualidade e
as caraterísticas do vinho.» No que às saídas profissionais respeita,
Vicente Seixas e Sousa discorda estar a formar enólogos para o
desemprego: «A integração dos recém-licenciados no mercado de trabalho
é muito elevada, justamente devido à extensa formação dos alunos, o
que lhes permite responsabilizar-se quer pelo trabalho na adega quer
pelo trabalho na vinha», um aspeto particularmente importante em
empresas de pequena e média dimensão, sem capacidade para contratar
técnicos diferenciados para cada setor.

http://www.jn.pt/revistas/nm/Interior.aspx?content_id=2564660

1 comentário:

Jo disse...

Hummmm.... como seria de esperar a UTAD tem todo o seu mérito. Mas, no que toca à exclusividade já não é bem assim.
E para que não fiquem margem de Dúvidas Algumas:

http://www.isa.utl.pt/home/node/4043

http://www.isa.utl.pt/files/pub/ensino/Temas_Mestrado_Viti_Enologia_Vinifera_Euromasterx.pdf

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