segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A nova 'crise do pão'

DE OUTRAS MARGENS

por MARIA JOÃO TOMÁS24 agosto 20122 comentários

Depois de um inverno sem chuva em muitos países produtores agrícolas,
o aumento do preço dos cereais nos mercados mundiais de
matérias-primas disparou em julho, antevendo-se uma nova crise
alimentar que, a ONU alerta, possa ser mundial.
A última grande crise deste género aconteceu em 2010 e muito embora o
G20 tenha criado, um ano depois, um Fórum de Reação Rápida para
minorar as consequências de uma situação similar, o agravamento do
preço dos bens de primeira necessidade, em países que estão a
atravessar situações políticas e económicas complicadas, pode
despoletar reações imprevisíveis. Lembremos apenas que as revoluções
da "Primavera Árabe" tiveram como uma das causas a denominada "crise
do pão de 2010", que foi suficiente para provocar uma onda de
contestação capaz de derrubar ditadores e criar conflitos regionais
sem fim à vista.
Já em 2008, uma outra crise semelhante acelerou os ânimos no Irão e a
população saiu à rua para questionar o regime, a propósito dos
duvidosos resultados eleitorais que deram a vitória a Ahmadinejad em
2009, por uma maioria mais do que absoluta. Embora tenha sido
brutalmente reprimida, inspirou jovens de todo o mundo, especialmente
os dos seus países vizinhos, que copiaram o modelo e aperfeiçoaram o
método.
Se a "crise do pão" derrubou algumas autocracias no Médio Oriente,
pode também ser desestabilizadora para as jovens democracias, a braços
com graves crises económicas e com governos inexperientes, que ainda
não souberam implementar medidas eficazes para resolver o aumento do
desemprego e da pobreza e que ultrapassam atualmente níveis anteriores
aos existentes antes das revoluções.
Para agravar ainda mais a situação, a quebra drástica do turismo que
se tem verificado este ano, e que tem deixado os cruzeiros no Nilo, ou
os luxuosos hotéis tunisinos, completamente vazios, está a ser
dramática, porque esta era a atividade que sustentava grande parte da
população, não só através da chamada "economia paralela", dos
bacchiches, e dos suks, mas também do sector oficial da hotelaria e da
restauração.
A fuga dos turistas ocidentais amedrontados com as reivindicações
salafitas de praias separadas para mulheres e homens, da proibição do
uso de biquínis, de fatos de banho, ou do consumo de álcool, está a
contribuir para uma crise económica de difícil resolução.
A Irmandade Muçulmana, no poder nestes países, é acusada de ser
demasiado condescendente com a ortodoxia islâmica e a contestação
interna à sua atuação não para de aumentar, culpando-os por cederem
demasiado para conseguir apoio financeiro dos sauditas e do Qatar.
Aliás, nas últimas manifestações de dia 18 agosto na Tunísia, um carro
de reportagem da televisão Aljazeera foi cercado na rua por populares
que diziam não querer o dinheiro do Qatar. Por outro lado, as mulheres
tunisinas estão enfurecidas com o retrocesso que representa a proposta
do artigo 27 na revisão da Constituição, onde consta que a mulher "é
complementar ao homem", em vez de "a mulher é igual ao homem", em
vigor desde 1956 e que consagra plena igualdade entre os dois géneros.
Mas a revolta contra a atuação da Irmandade Muçulmana tem também
outros contornos, que fazem lembrar tempos antigos, porque as
manifestações são reprimidas com gás e balas de borracha e as prisões
têm presos políticos contestatários do Governo, aumentando a tensão
com a população.
Por outro lado, nos países subsidiados pelo petróleo e pelo gás, e
onde os ditadores têm o cuidado de calar a população com aumentos de
salários e subsídios, como acontece na Arábia Saudita ou no Qatar,
talvez a subida dos preços dos cereais não se note tanto, mas no Irão,
a braços com sanções e embargos, a situação pode ser mais complicada.
Atualmente a crise é tanta que foi proibida a passagem de anúncios na
televisão, ou a colocação de cartazes na rua, com imagens de frangos e
galinhas, porque simplesmente as pessoas não têm dinheiro para comprar
este alimento muito popular. Por outro lado, a aproximação das
eleições presidenciais iranianas, já em 2013, e a suspeita de que se
seja um ato encenado, trazem ainda mais instabilidade interna.
Adivinham-se tempos difíceis para o Médio Oriente e Norte de África
com esta subida do preço dos cereais. Teme-se que uma nova "crise do
pão" se junte às crises já existentes, como por exemplo à "crise do
frango" no Irão, ou à "crise do turismo" no Egito e na Tunísia, e com
consequências difíceis de prever.

http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2733493&seccao=Maria%20Jo%E3o%20Tom%E1s&page=-1

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