sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O sapo, o monge e o escorpião

OPINIÃO


Carlos Neves

Há algum tempo atrás, alguém que conhece bem os relacionamentos na
cadeia de valor da produção agro-alimentar fez uma interessante
comparação da realidade actual com uma antiga história, cujo autor
desconheço:

"Era uma vez um Escorpião, que vivia nas margens de um rio. Um dia,
depois de uma grande chuvada, a água do rio começou a subir de forma
ameaçadora para o Escorpião. Este, ao ver que a água não parava de
subir e seguramente iria chegar à sua toca, o que o faria morrer
afogado, começou a chamar um sapo que descansava numa pedra e
pediu-lhe para o transportar nas suas costas até à outra margem. O
Sapo disse-lhe que não, porque sabia que o Escorpião lhe picaria e lhe
provocaria a morte. Mas o Escorpião, com toda a sua capacidade de
argumentação, lá convenceu o sapo a transportá-lo e assim aconteceu.
Quando iam no meio do rio, o Escorpião picou mesmo o Sapo,
envenenando-o. O sapo, antes de morrer ainda teve tempo de perguntar
ao Escorpião: "- Porque me picaste? Agora morreremos os dois!". O
Escorpião, respondeu ao Sapo, dizendo-lhe apenas: " - Está na minha
natureza"".

Esta história é uma boa comparação com a realidade de quem precisa dos
fornecedores mas vai "ferrando" reduções de preços, sem se importar
com o aumento de custos de produção, nomeadamente os custos de
alimentação animal e a consequente insustentabilidade das explorações
agro-pecuárias.

Por outro lado, sendo um alerta sério e realista, a história tem um
final trágico, diferente de uma outra história do escorpião, de autor
também desconhecido:

"Um Monge e seus discípulos caminhavam por uma estrada, quando viram
um escorpião a ser arrastado pelas águas. O Monge correu pela margem
do rio, meteu-se na água e agarrou o bicho. Quando o trazia para fora,
o escorpião picou-o e, devido à dor, o homem deixou-o cair novamente
no rio. Foi então à margem e socorrendo-se de um ramo de árvore,
entrou no rio, segurou o escorpião e salvou-o sem ser picado. Os
discípulos, que assistiam perplexos à cena, perguntaram-lhe então
porque salvara o animal se, afinal de contas, ele tinha sido mau para
ele ao picá-lo. O Monge ouviu tranquilamente os comentários e
respondeu: "Ele agiu conforme sua natureza, eu de acordo com a minha,
e não permiti que a sua natureza mudasse a minha.""

Que lições podemos tirar destas histórias?

O primeiro caso é um bom exemplo da "lei da selva" que é o capitalismo
selvagem, sem regras, onde se espera que funcione a "mão invisível do
mercado"; Já sabemos que não funcionou na área financeira, mas
deixamos agora avançar a especulação nos mercados de matérias-primas
para a alimentação animal e a jusante o domínio da grande distribuição
como porteira do consumo alimentar;

Repare-se também que o sapo sabia o que faria o escorpião mas
deixou-se levar pela conversa sem tomar precauções; é esta a realidade
de muitos que produzem mas não se organizam e mobilizam para se
proteger. Em sentido contrário, o monge aprendeu com a primeira
agressão e usou o pau como arma para defesa pessoal e também protecção
do escorpião cujo mal acabaria por provocar danos fatais a si próprio;
do mesmo modo, quem asfixia a produção e/ou transformação, destrói a
capacidade produtiva de quem lhe fornece matérias-primas essenciais e,
de forma indirecta, a economia local e a capacidade de consumo,
acabando como vítima das próprias acções.

No mundo actual, os "sapos" não podem evitar os "escorpiões" na
travessia do rio que separa a produção do consumo; A sua companhia é
inevitável mas não pode ter o final trágico da história.

Não se espere que os escorpiões, por si, se auto-regulem. É da
natureza humana e da economia livre procurar o máximo lucro, comprar o
mais barato possível, conquistar a máxima quota de mercado, procurar
sempre o crescimento, que se não for possível à custa do consumidor ou
da concorrência irá ocorrer asfixiando o produtor. Por isso, compete
ao Estado e concretamente ao Governo regular o mercado de modo a
evoluir da lei da selva para uma sociedade humana, equilibrada e
sustentável, com partilha de esforços e resultados entre produção,
indústria e distribuição. Sabemos que não é uma tarefa fácil e exigirá
a paciência e persistência de monge, mas terá de ser feita com
urgência. Tenhamos fé mas façamos força!

Carlos Neves
Presidente da APROLEP - Associação dos Produtores de Leite de Portugal

http://www.agroportal.pt/a/2012/cneves4.htm

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