segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Os mitos alimentares

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30 de Setembro, 2012por Ricardo Nabais

A nossa alimentação está cheia de mitos. Comer laranja à noite faz
mal? Deve-se beber vinho a seguir a uma fatia de melancia?
De manhã é ouro, à tarde prata, à noite mata. Não é o título de um
thriller televisivo de gosto duvidoso. O que se designa por esta série
de metáforas estendidas ao longo do dia é uma simples laranja. E há
muito que entra numa lista sem fim de ditados e superstições populares
que definem a melhor forma de lidarmos com os nossos alimentos.

Por isso, há muitos mais exemplos: o vinho 'encortiça' o estômago se o
bebermos depois de ingerirmos uma fatia de melancia; peixe não puxa
carroça; a bebida deve ser comida e a comida bebida, entre muitos
outros. Mas se estes são casos de sabedoria popular, há versões mais
contemporâneas de filosofia alimentar que rompem as malhas do bom
senso.

Para quem viveu a adolescência ou os primeiros passos da maturidade
nos anos 80, encarou de frente a era de ouro dos óleos vegetais. Eles
seriam o maná da bem-aventurança gastronómica, o supra-sumo da saúde,
e os óleos de cozinha convencionais tiveram de atravessar uma década
de agruras, perdida para o óleo de girassol ou para o azeite.

Dito de outro modo, a comida entrava oficialmente nos planos de
marketing das empresas. Pelo menos em Portugal, com um ligeiro atraso
da praxe em relação a outros países ocidentais.

Mas é preciso deixar a advertência: a publicidade feita em torno dos
alimentos não mente, mas permite fantasiar. Esta técnica de promoção
«baseia-se na composição química do alimento, normalmente em algo que
o consumidor valorize. Aí, é só preciso criar a sugestão dos
benefícios que podem advir», explica Manuel António Coimbra,
especialista em Bioquímica Alimentar na Universidade de Aveiro.

Mas não nos desviemos do assunto. Qual é o óleo melhor para cozinhar o
quê? Não é possível ser-se taxativo na resposta.

Basta dizer que os tempos mudaram e que as guerras de marketing entre
marcas têm de ser medidas de outra maneira. «Os óleos alimentares são
hoje em dia muito mais bem controlados quanto à formação de compostos
de decomposição térmica», continua Coimbra. «Se forem mudados
regularmente não há problema». O que se sabe com alguma certeza,
porém, é que, independentemente do óleo, como os alimentos o absorvem,
«tornam-se muito mais calóricos». Mas o azeite não é de desprezar
enquanto gordura saudável. «É melhor para fritar, desde que não fique
escuro com mais do que uma fritura», completa a endocrinologista
Isabel do Carmo.

Carne de minhoca

As marcas devem acautelar-se nas guerras comerciais. A vigilância
alimentar redobrou desde aqueles loucos anos 80, em que chegaram a
circular boatos sobre a origem da carne do então recém-chegado
McDonald's.

Dizia-se que a carne dos hambúrgueres da multinacional norte-americana
não era de vaca, mas de minhoca. E que até haveria culturas de
minhocas em Vila Franca de Xira para fornecer os restaurantes... Não
passou de um mito urbano com requintes de ruralidade.

Com a maior vigilância, veio também um rigor maior. Os alimentos devem
passar por várias fases em laboratório (e fora dele) para que dêem
provas da sua qualidade efectiva. «Têm de ser feitos ensaios in vitro,
in vivo e epidemiológicos que comprovem que o alimento tem na
realidade os benefícios para a saúde que u se reivindicam» para ele,
esclarece Manuel António Coimbra. Por isso, não basta falar. É preciso
testar. Por isso, se dizemos que o iogurte x ou a margarina y são bons
para a saúde, podemos entrar no paradoxo de, como Garrett, falar a
verdade a mentir, ou de mentir dizendo a verdade.

Não se pode dizer, no entanto, que um anúncio destes seja uma mentira.
Há uma subtileza química naquelas três fases de laboratório: «Nem
todos os compostos benéficos a determinado órgão atingem o seu
destino». Coimbra acrescenta um exemplo à sua observação. «Um alimento
benéfico para as células cerebrais que se verifique in vitro mas que
não seja absorvido pelo estômago nem pelo intestino ou que aí seja
degradado nunca irá chegar à corrente sanguínea, que o transportaria
ao cérebro».

Não mata, mas mói

Entendido. Mas o que é feito dos outros mitos mais prosaicos? Será
mesmo que as laranjas nos matam se as comermos à noite? É simples: há
quem faça má digestão da laranja e há quem não tenha qualquer problema
com o citrino. Como explica Isabel do Carmo, «àquelas que fazem má
digestão não mata, mas perturba o sono».

Para dormir melhor nada como um prato leve ao jantar. Este arrazoado
permite confirmar a veracidade de outro dos pilares da sabedoria
popular, 'peixe não puxa carroça'. Mais uma vez, a explicação é
simples. Isabel do Carmo serve-se de uma comparação: «Cem gramas de
perna de porco assada têm 341 kcalorias e 100 gramas de pescada cozida
114 kcalorias». Há que ter em conta, porém, que «é natural que quem
faça trabalho físico esforçado, o que actualmente já acontece em
poucas tarefas, sinta que o peixe não lhe dá calorias para 'puxar a
carroça'».

O esforço físico é outra das variáveis a ter em conta para confirmar
os ditados. Mas daria para um tratado à parte. Alguns trabalhos, que
antes quase exigiam capacidades atléticas, vão-se tornando mais raros
e o consumo de calorias aumenta. O resultado é uma população obesa.
Nem sempre foi assim, é claro. A chegada da democracia atirou os
níveis de vida dos portugueses para níveis de 1.º mundo e
aumentou-lhes o peso. Antes, a alimentação era algo mais relativo. E
alguns ditados são testemunhos de tempos de carência, entretanto
esquecidos, e que podem regressar com a crise e a austeridade.

Noutros tempos, era natural aconselhar às grávidas o consumo de uma
cerveja preta com gema de ovo. Isabel do Carmo esclarece esta aparente
extravagância: «A cerveja preta com gema de ovo é uma bomba calórica,
porque as pessoas viviam na fronteira com a carência. Actualmente não
está nada indicado, quando a maior parte das vezes o que há é excesso
calórico».

Chegou, entretanto, uma área obcecada com a saúde. A primeira etapa é
a alimentação. Saltitam nos pequenos ecrãs, na internet, em outdoors,
anúncios a tecer loas a compostos químicos designados por letras
gregas. O ómega 3 passou ao estatuto de musa dos alimentos saudáveis.
Neste caso, o poema épico que lhe dedica o marketing diariamente está
certo, de acordo com os especialistas. Podem realmente prevenir
doenças cardiovasculares e são agentes privilegiados para ajudar no
processo de regulação de várias funções biológicas. Lancemo-nos, por
isso, a pratos de salmão e da tradicionalíssima sardinha.

E se a sardinha é símbolo nacional, muito já se disse também sobre as
propriedades do vinho, essencialmente o tinto. Os técnicos de
marketing agarram-se a determinadas características químicas e estão
atentos a fenómenos como o do 'paradoxo francês'.

A expressão remonta ao início dos anos 90, quando investigadores da
Universidade de Bordéus publicaram um estudo em que se mostravam
impressionados com a dieta dos franceses e a sua longevidade.

Apesar de não se pouparem a gorduras e calorias às refeições, os
gauleses pareciam menos expostos a doenças do coração quando
comparados, por exemplo, a outros obesos ilustres, os americanos. A
resposta estava num segredo afinal mal guardado: um copo de vinho
tinto à refeição. A chave de uma dúvida milenar tinha sido encontrada.
E é evidente que o consumo só é bom se for feito com parcimónia...
Deve evitar-se, já agora, bebê-lo depois de uma fatia de melancia,
porque 'encortiça' no estômago e causa enfartamento. Sabedoria popular
dixit.

Água para todos os gostos

Na era da saúde, a água também caiu no imaginário colectivo. O
resultado foi uma inundação, já que são bastantes os equívocos
relacionados com o líquido da vida.

Exemplos? A água morna em jejum ajuda a emagrecer. A resposta é não.
«É óptima para quem tem obstipação. Mas não faz emagrecer», diz Isabel
do Carmo. Manuel António Coimbra completa: «Para emagrecer é preciso
consumir menos energia do que a que se gasta. A água não dá nem tira
energia».

E qual será a quantidade ideal diária do precioso líquido? 1,5 a 2
litros/dia. Mas, tendo em conta que muitos alimentos que ingerimos já
o têm em grande percentagem, é difícil medir a dose certa. Seja como
for, quem perde muita água por transpiração ou quem sofre de certas
doenças crónicas, como a diabetes, deve estar alerta para um consumo
de água adequado.

Mais dúvidas? O escritor norte-americano Jack London (1876-1916) disse
que uma das transformações mais sofisticadas que a humanidade trouxe
ao mundo foi a confecção dos alimentos. Por isso, nunca haverá
consensos. A não ser que se aplique, mais uma vez, um provérbio à
situação: a fome é a melhor cozinheira.

ricardo.nabais@sol.pt

http://sol.sapo.pt/inicio/Vida/Interior.aspx?content_id=60116

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