quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Ética e agricultura

OPINIÃO

PETER SINGER 15/01/2013 - 19:35

Deveriam os países ricos – ou os investidores aí estabelecidos –
comprar terrenos agrícolas em países em desenvolvimento? Esta questão
foi levantada no relatório Negociações Transnacionais de Terrenos para
Agricultura no Hemisfério Sul, divulgado no ano passado pela Land
Matrix Partnership, um consórcio europeu de institutos de investigação
e de organizações não-governamentais.

O relatório mostra que, desde 2000, os investidores ou órgãos estatais
dos países ricos ou emergentes compraram mais de 83 milhões de
hectares (mais de 200 milhões de ares) de terrenos agrícolas em países
em desenvolvimento mais pobres - o que equivale a 1,7% dos terrenos
agrícolas a nível mundial.

A maior parte das referidas aquisições foi feita em África, dois
terços das quais foram efectuadas em países onde a fome é generalizada
e as instituições para o estabelecimento de propriedade fundiária
formal são muitas vezes frágeis. Só em África, as aquisições ascendem
a uma área de terrenos agrícolas com a dimensão do Quénia.

Foi alegado que os investidores estrangeiros estão a adquirir terras
que não estão a ser cultivadas; deste modo, ao viabilizar estes
terrenos para a produção, aumentam as aquisições e a disponibilidade
global de alimentos. Mas o relatório da Land Matrix Partnership
verificou não ser esse o caso: cerca de 45% das aquisições de terrenos
agrícolas incluíam terrenos que estavam a ser cultivados e cerca de um
terço dos terrenos adquiridos era composto por área florestal,
indicando que o seu desenvolvimento poderia representar riscos para a
biodiversidade.

Os investimentos são privados e públicos (por exemplo, procedentes de
entidades estatais) e são provenientes de três diferentes grupos de
países: economias emergentes como a China, a Índia, o Brasil, a África
do Sul, a Malásia e a Coreia do Sul; países do Golfo ricos em petróleo
e países com economias desenvolvidas, como os Estados Unidos e vários
países europeus. Em média, o rendimento per capita nos países que
estão na origem destes investimentos é quatro vezes superior ao dos
países-alvo.

A maioria dos investimentos tem por objectivo a produção de alimentos
ou outras culturas para serem exportadas dos países em que a terra é
adquirida, pela razão óbvia de que os países mais ricos podem pagar um
valor mais elevado pelos produtos. Mais de 40% destes projectos visam
exportar alimentos para o país de origem – o que sugere que a
segurança alimentar é uma das principais razões para a aquisição dos
terrenos.

A Oxfam International atribui a designação "apropriação de terras" a
algumas destas transacções. O seu relatório, Nossa Terra, Nossas Vidas
(http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/bn-land-lives-freeze-041012-en_1.pdf),indica
que, desde 2008, as comunidades afectadas pelos projectos do Banco
Mundial apresentaram 21 queixas formais de alegadas violações dos seus
direitos fundiários. A Oxfam, chamando a atenção para as situações de
aquisições de terrenos em grande escala que constituíram violações
claras dos direitos, solicitou ao banco que congelasse os
investimentos em matéria de aquisição de terrenos até que sejam
estabelecidas normas que garantam que as comunidades locais são
informadas desses investimentos com antecedência, com a opção de poder
recusá-los. A Oxfam pretende igualmente uma garantia por parte do
banco de que estes negócios de terras não prejudicam a segurança
alimentar, quer a nível local, quer nacional.

Em resposta, o Banco Mundial admitiu que existem casos de abuso na
aquisição de terrenos, especialmente nos países em desenvolvimento
onde a governação é frágil e afirmou defender uma participação mais
transparente e inclusiva. Simultaneamente apontou para a necessidade
do aumento da produção de bens para alimentar os dois mil milhões de
pessoas que se prevê viverem em 2050 e sugeriu que, para melhorar a
produtividade, é necessário um maior investimento na agricultura nos
países em desenvolvimento. O banco rejeitou a ideia de uma moratória
sobre o seu próprio trabalho com os investidores na agricultura,
argumentando que a mesma iria incidir precisamente naqueles que têm
maior probabilidade de agir correctamente.

Poderia perguntar-se se a transparência e a exigência do consentimento
por parte dos proprietários locais para uma venda serão suficientes
para proteger as pessoas que vivem em condições de pobreza. Os
defensores dos mercados livres argumentam que, se os proprietários
rurais locais pretendem vender a sua terra, a escolha é sua.

Mas, tendo em conta as pressões da pobreza e a atracção pelo dinheiro,
o que é preciso para que as pessoas sejam capazes de fazer uma escolha
verdadeiramente livre e esclarecida sobre a venda de algo tão
significativo como um direito de propriedade? Afinal, não permitimos
que as pessoas pobres vendam os seus rins
(http://www.project-syndicate.org/commentary/kidneys-for-sale-) a quem
pagar mais.

Naturalmente, os defensores radicais dos mercados livres dirão que
deveríamos fazê-lo. Mas, no mínimo, é preciso explicar a razão pela
qual as pessoas devem ser proibidas de vender os rins, mas não de
vender a terra onde cresce o seu alimento. A maioria das pessoas pode
viver sem um rim. Ninguém pode viver sem alimentos.

Por que razão a compra de partes do corpo origina uma condenação
internacional e a compra de terrenos agrícolas não provoca a mesma
reacção, mesmo quando esta implica expulsar proprietários rurais
locais e produzir alimentos para exportação para os países ricos, em
vez de assegurar o consumo local?

O Banco Mundial pode realmente estar mais preocupado do que os outros
investidores estrangeiros relativamente aos direitos dos proprietários
locais. Se assim for, as 21 queixas apresentadas contra os projectos
do banco são provavelmente a ponta visível de um enorme icebergue de
violações de direitos fundiários por parte de investidores
estrangeiros em projectos agrícolas de países em desenvolvimento –
ficando as restantes partes do icebergue invisíveis, uma vez que as
vítimas não têm acesso a qualquer procedimento de denúncia.

Um desses casos chegou tardiamente ao conhecimento da Comissão dos
Direitos Humanos da ONU. Em Novembro, a comissão concluiu que a
Alemanha não conseguiu controlar o Neumann Kaffee Gruppe no que diz
respeito à sua conivência na expulsão forçada de várias aldeias no
Uganda para dar lugar a uma grande plantação de café.

As expulsões tiveram lugar em 2001 e as populações locais ainda vivem
em condições de extrema pobreza. Não foi encontrada uma solução, nem
no Uganda nem na Alemanha, para a violação de direitos que, de acordo
com a comissão, lhes assistem ao abrigo do Pacto Internacional sobre
os Direitos Civis e Políticos
(http://www2.ohchr.org/english/law/ccpr.htm), do qual a Alemanha é um
dos signatários. Deveremos acreditar que os proprietários de terras
teriam uma vida melhor com investidores da China ou da Arábia Saudita?

Tradução: Teresa Bettencourt/Project Syndicate

Peter Singer é professor de Bioética na Universidade de Princeton e
professor laureado na Universidade de Melbourne

http://www.publico.pt/opiniao/noticia/etica-e-agricultura-1580832

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