quinta-feira, 13 de junho de 2013

Falemos de agricultura, excelentíssimo Presidente

Daniel Oliveira
8:00 Quarta feira, 12 de junho de 2013


No discurso do 10 de junho, o Presidente da República concentrou a sua
intervenção no "pós-troika". Já aqui disse o que pensava sobre o
assunto: discutir o que fazer depois ignorando o que se está a fazer
agora é uma forma habilidosa de demissão das responsabilidades
políticas de cada um. O futuro de Portugal está a decidir-se agora e
não é indiferente ao que se possa fazer no futuro os erros que, numa
altura tão sensível, sejam agora cometidos.

Cavaco Silva concentrou grande parte da sua intervenção na
agricultura. A agricultura é um excelente tema para discutir o futuro
próximo e o passado recente de Portugal. Porque foi nela que sentiu de
forma mais violenta os erros cometidos na integração europeia - de que
Cavaco Silva foi apenas o estreante que deu o mote para os governos
seguintes -, a função cumprida pelos fundos estruturais, a cegueira do
poder político e do modelo de desenvolvimento em que apostou, os
efeitos do mercado único europeu para os países periféricos e os
efeitos devastadores do euro na nossa economia. E é também o melhor
exemplo de como sair desta crise, já que tem como principal
característica a fraca incorporação, para a produção, de bens
importados. Recordo que as exportações nacionais incorporam, em média,
40% de importações. Na agricultura e nos sectores ligados à floresta
incorporam apenas 27%. Diria mesmo, apesar de não ser esse o tema
desta crónica, que seria o sector que mais ganharia com o fim do euro
ou a saída de Portugal da moeda única.

Mas o que Cavaco Silva queria era "contrariar algumas ideias feitas".
E percebemos imediatamente ao que vinha. É ao que vem sempre:
defender-se de críticas, falar dele próprio fingindo que fala do País.
É sabido que uma das maiores críticas que se faz ao legado cavaquista
é exatamente no sector da agricultura e pescas, cujo peso na economia
era visto, na altura, como sinal de um país atrasado. E Cavaco quis
pintar um retrato diferente. Escolhendo cirurgicamente os números que
o poderiam socorrer e os indicadores que pudessem contrariar o que se
nota à vista desarmada.

Concentro-me nos dados que nos são exibidos pelo recente estudo "25
anos de Portugal Europeu" (cuja leitura aconselho), do insuspeito
Augusto Mateus e da ainda mais insuspeita Fundação Francisco Manuel
dos Santos. Aí, pode observar-se que, ao contrário do que aconteceu
noutros sectores, este foi o único cuja produtividade divergiu em
relação à média comunitária. Entre 1986 e 2008 o Valor Acrescentado
Bruto gerado pelo sector primário passou de 10% para 2%. Portugal
passou de 7º para 12º lugar na representatividade económica do sector
(agricultura, silvicultura e pescas). Houve uma queda do volume de mão
obra usada (que Cavaco quis traduzir numa maior competitividade que
não se verificou) para metade. Entre 1989 e 2009 o número de
explorações agrícolas caiu 50%. Muito bem, ficaram maiores. Mas a
superfície agrícola utilizada também caiu 9%. A capacidade da frota
pesqueira caiu para metade e desapareceram quatro quintos das
embarcações de pesca sem motor.

Entre 1986 e 2008, o aumento real da produção agrícola ficou abaixo
dos 25% e na pesca caiu 7%. Portugal manteve-se a meio da tabela
europeia no crescimento de produção alimentar mas agravou bastante a
taxa de cobertura das importações pelas exportações de bens
alimentares. Ela era de 43% em 1990 e passou para os 32% em 2010. Na
Europa dos 27, só o Reino Unido está pior. Em 1986 importávamos 35% do
que comíamos. Em 2007, importamos 50%. Porque, com as alterações do
consumo, passamos a consumir coisas que não produzíamos? Não. Porque
passamos a importar produtos em que éramos praticamente
autossuficientes: hortaliça, fruta, carne e leite. E em 2007, Portugal
importava mais de quatro quintos do peixe, oleaginosas e cereais que
consumia.

Sim, o tema da agricultura é excelente para discutir porque aceitámos
ser financiados para não produzir, numa visão distorcida do que
deveria ser a modernização deste sector. Sim, é excelente para
falarmos do que foi o desastroso ordenamento do território, a
destruição do mundo rural e a desertificação do interior. Sim, é
excelente para provar o crónico desequilíbrio de poderes na União
Europeia, de que a PAC é apenas um dos exemplos mais escandalosos.
Sim, é excelente para discutir os efeitos de uma moeda forte, que
torna a importação mais interessante do que a produção para exportar e
que arrasou com a competitividade externa de um País que ainda tinha
de fazer muito para viver num mercado aberto. Sim, é um excelente
tópico para discutir os efeitos que a nossa permanência no euro, nas
atuais circunstâncias, terá para a nossa economia. E para
determinarmos quais são os sectores onde temos de apostar.

A agricultura só não é um bom tema para Cavaco Silva puxar dos galões
dos seus 10 anos de tempo, oportunidades e dinheiro perdidos. Não foi,
longe disso, o único responsável pelos números que aqui deixei. Mas
foi o primeiro a ignorar a insustentabilidade de um País que desistia
de produzir bens transacionáveis. Que se entregava a uma insuportável
dependência alimentar. Que se virava quase exclusivamente para os
serviços (muitos deles sem acrescentarem valor ao que era produzido) e
para a construção em obras públicas (que, sendo precisa, foi muito
para além das nossas necessidades quando o dinheiro que chegava em
barda nos permitiria desenvolver as nossas atividades produtivas) e na
habitação (que, através do financiamento público aos pedidos de
empréstimos para compra de casa por jovens e ao absoluto desprezo pelo
mercado de arrendamento e a reabilitação, contribui de forma decisiva
para o endividamento privado). Foi o primeiro, mas não o único, a ter
uma posição acrítica das políticas europeias, que ainda hoje domina a
vida política portuguesa. A resumir toda a discussão do papel de
Portugal na Europa aos montantes dos fundos estruturais que se
encarregou de estourar como se não houvesse amanhã.

Com habilidades estatísticas, Cavaco Silva quis que nos esquecêssemos
das suas responsabilidades políticas. De como o que diz hoje é em tudo
o oposto do que fez ontem. Escolheu mal o tema. O que aconteceu à
nossa agricultura é o melhor retrato de todos os erros que cometemos
na nossa integração europeia. E Cavaco Silva, que teve uma década para
fazer as escolhas certas, o seu principal protagonista.


http://expresso.sapo.pt/falemos-de-agricultura-excelentissimo-presidente=f813253

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