quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Deve-se sorrir, chorar ou devanear quando se comem passas e figos secos? A resposta é sim

Na ponta da línguaPor Miguel Esteves Cardoso


27.12.2013 Miguel Esteves Cardoso

É, por isso, ao mesmo tempo melancólico e feliz comer as doze passas à
meia-noite, tendo já entrado no Inverno. Em cada passa que come há
também a quarta estação: a Primavera de 2014, quando começarem a
crescer as uvas que acabarão nas nossas bocas.

A fruta seca é a maneira mais bonita de guardar a fruta. Basta deixar
que o sol e o ar façam o que fazem. Não é preciso cozê-la nem
acrescentar-lhe açúcar nem perder grande tempo ou ter grandes cuidados
com ela. Não é preciso saber nada senão esperar.

São bons os frutos secos que nos chegam da Turquia e doutros países
sábios. Mas falta-nos o prazer de comer os frutos secos das árvores
que conhecemos, que nos fazem companhia ao longo do ano. Por toda a
parte se vêem árvores rodeada de fruta caída que para ali fica a
apodrecer. Ou, mais correctamente, a ser comida por outras espécies
que não a humana. Porque não podemos comprar fruta seca da nossa, que
já foi fruta boa mas que sobrou ou que logo se decidiu destinar para
secar?

Temos a sorte de ter uma amiga erudita e delicada que vive no Algarve
e conhece todos os segredos da natureza e das pessoas que vivem dela.
Esta semana mandou-nos uma caixa cheia de mimos — bolinhos de amêndoa
que são tão mágicos que só se deixam comer em série, até não ficar
nenhum —, entre os quais houve um que nos fez sorrir como o gato da
Alice no País das Maravilhas.

Eram uns figos-bolos com lasquinhas de amêndoas novas lá dentro. Eram
obras-primas de alta confeitaria mas o bem que faziam à alma era
associar o figo do Verão, já velhinho e seco, à amêndoa nova e
empertigada do Outono.

A nossa amiga vive ao pé das figueiras que lhe dão os figos frescos e
secos, das oliveiras que lhe dão o azeite e das laranjeiras que lhe
dão as laranjas. Nunca precisa de comprar nada. Mas não é só a
auto-suficiência dela que se inveja: é o luxo a que se dá e a
felicidade que tem, tanta que sobra para dar aos outros.

A doçaria algarvia faz milagres com os figos e as amêndoas. As
estrelas de figo e amêndoa são apenas uma das centenas de delícias que
para lá se fazem. Se quiser ler um bom resumo, veja e leia o que a
ilustre e beneméritaConfraria dos Gastrónomos do Algarve diz sobre a
doçaria algarvia.

Foi a Maria João, amor da minha vida e de cada dia que passo com ela,
que me ensinou a apaixonar-me por passas. Ela come-as com o devido
respeito e encanto, uma a uma, ao longo da tarde e do ano.

Distingue as brancas das tintas e as várias técnicas de secagem.
Conhece-lhes o grau de doçura e de mirragem, classificando as diversas
texturas, desde as mais sumarentas às mais austeras e concentradas.

Mostrou-me a tragédia que é as passas acabarem todas em bolos,
misturadas com outras coisas. Se não fossem as passas muitos bolos
estariam tramados mas, que diabo, poder-se-ia estabelecer um limite
para essa emigração forçada, reservando-se 25% que fosse para o
consumo de passas na forma pura, sem acompanhamentos ou badaladas
desnecessárias.

Quem faz bolos não resiste a ir roubando umas passas para a boca. Por
isso mesmo, os restaurantes poderiam ter pratinhos com passas e outras
frutas secas (incluindo nozes, amêndoas e avelãs) para servir com a
devida pompa e circunstância — e a pagar, porque as boas merecem ser
caras e merecem ser pagas.

Desde os anos 60 do século passado que é fácil comprar passinhas da
Sun-Maid, em caixinhas de 28 gramas. Vêm da Califórnia, são baratas,
altamente portáveis e não se estragam, não precisam de refrigeração e
estão sempre prontas para comer. Uma caixa tem dezenas e mais dezenas
de passinhas e todas juntas só têm 90 calorias.

O único senão é não serem muito boas. As passas portuguesas são boas
mas são difíceis de encontrar e vendem-se em pacotes impossíveis de
transportar. Porque não copiam as embalagens perfeitas da Sun-Maid?

Sonho com uma imensidão de escolhas: passas das nossas várias castas,
preparadas segundo as diferentes tradições regionais...

E depois desço à terra e lembro-me da paixão que temos para
desperdiçar o que temos.

http://lifestyle.publico.pt/napontadalingua/329115_deve-se-sorrir-chorar-ou-devanear-quando-se-comem-passas-e-figos-secos-a-resposta-e-sim

Sem comentários:

Enviar um comentário