sexta-feira, 4 de julho de 2014

E da pedra se fez vinho

JOSÉ AUGUSTO MOREIRA 04/07/2014 - 11:45

Há dez anos que a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico foi declarada património mundial pela UNESCO. A classificação abarca vinhas heróicas criadas em solos de rocha vulcânica e onde se produzem vinhos únicos, tal como o sistema de cultivo em currais de pedra de lava.

 
MIGUEL MANSO

Nem sempre a fama fala mais alto. Numa altura em que a França ainda anda às voltas com a candidatura de Champanhe a património mundial e em que o Piemonte italiano - de onde saem os igualmente famosos espumantes de Asti - só há dias viu aprovada a classificação dos seus vinhedos, completa-se já uma década desde que a Paisagem Cultural da Vinha da Ilha do Pico consta da lista da UNESCO.

Foi em Suzhou, na China, que o Comité do Património Mundial aprovou a classificação do secular sistema de cultivo da vinha naquela ilha dos Açores, reconhecendo o valor de uma "paisagem extraordinariamente bela e feita pelo homem". Mesmo que então uma grande parte da zona a classificar estivesse votada ao abandono. O plano de gestão proposto pelo governo regional propunha, precisamente, um conjunto concreto de acções para a sua revitalização, no qual terá nestes dez anos investido já cerca de cinco milhões de euros.

E o balanço é claramente positivo. Quem o garante é o actual responsável pelo Parque Natural do Pico, Manuel Paulino da Costa, no cargo há três anos. "Conseguiu-se aquilo que à partida se apresentava como o mais importante, que era estancar o abandono", diz, explicando que, "ao mesmo tempo, foi já revitalizada uma boa parte da vinha" o que, em seu entender, terá deixado "garantidas as condições para que a zona se mantenha como paisagem viva".

Mas não é só o cultivo da vinha. Os programas de incentivo incluem também a reabilitação de muros e construções e, nos dois últimos anos, tem-se verificado uma multiplicação do número de candidaturas aos apoios públicos àquela actividade. Efeitos da crise? "Também, seguramente", concede o responsável, que aponta ainda para a crescente visibilidade deste património, para a cada vez maior afluência de turistas e ainda para o reconhecimento e valorização crescentes dos vinhos. E os números aí estão para o confirmar. Só no ano passado foram apresentados 50 projectos para revitalização e recuperação, ou seja quase metade dos 116 que surgiram durante os primeiros oito anos de funcionamento do sistema de incentivos. E neste ano, até há um mês atrás, tinham já dado entrada 15 novos projectos. Em muitos casos, incluem recuperação de antigas construções para turismo rural, o que para o director do parque representa a afirmação do projecto e a confiança no futuro por parte das populações.

No que respeita ao turismo os números são, de facto, animadores. Em 2011 registaram a chegada à ilha de cerca de mil visitantes, número que triplicou no ano seguinte a disparou já para os seis mil no ano passado. Não só, é claro, pela paisagem das vinhas, mas também pela observação de baleias e as caminhadas "à montanha", como por aqui é sempre designado aquele que nos seus 2351 metros é o ponto mais alto de Portugal. Na zona classificada há três percursos pedestres, tendo o da Criação Velha sido recentemente incluído na lista dos dez melhores do mundo, num ranking organizado por uma revista inglesa da especialidade

Beleza secular
No relatório sobre a candidatura, os técnicos do Icomos – o órgão consultivo no qual se apoiam as decisões da UNESCO – deixaram escrito que "a paisagem da Ilha do Pico é reflexo de uma resposta única à cultura da vinha numa pequena ilha vulcânica. Esta paisagem extraordinariamente bela feita pelo homem, composta por pequenos campos limitados por muros de pedra, é o testemunho de gerações de pequenos agricultores que, num ambiente hostil, criaram um modo de vida sustentável e um vinho muito apreciado".

Um legado que começou a ser construído já no tempo dos primeiros povoadores, no séc. XV. Foram as ordens religiosas, com saber acumulado noutras paragens, que para ali levaram culturas de tipo mediterrânico, como a vinha e a figueira.

A parte ocidental da ilha, inóspita e improdutiva porque dominada por solos de pedra de lava, permanceu, no entanto, praticamente abandonada. Foram, mais uma vez, os monges que aí começaram a erguer protecções para o plantio de videiras. E, com os seus conhecimentos de misturas de castas na fermentação, começaram a fazer vinhos muito apreciados, o que levou ao interesse das populações por essas áreas inóspitas para a produção de vinha.

A singularidade do cultivo resulta do complexo e geométrico reticulado de muros de pedra basáltica, que cria uma espécie de ninho protector onde cresce a videira. É o sistema de currais ou curraletas, que comunicam entre si por aberturas nas extremidades, permitindo a circulação dos trabalhadores. Há uma abertura em cada uma das extremidades da quadrícula, mas sempre desencontradas para assim impedir a circulação do vento e respectivos malefícios.

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