sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Apetitoso? Mas vai tudo para o lixo...


Todos os dias, são desperdiçadas 50 mil refeições nos restaurantes nacionais. Um número impressionante que é apenas uma parcela do milhão de toneladas de alimentos que anualmente são deitados fora. Mas há cada vez mais portugueses empenhados em resgatar esta comida para o prato de quem precisa
Luísa Oliveira (com Sónia Calheiros)
8:00 Quinta feira, 30 de Outubro de 2014 |


Abre-se o frigorífico da família Neves e saltam de lá algumas caixas com restos de refeições que não foram comidas até ao fim. Há arroz branco, massa, umas bifanas, arroz de pato e 14 claras que sobraram de um bolo. Destas pequenas doses, só as bifanas e as claras iriam parar ao lixo, uns dias depois. O restante foi aproveitado para a marmita de Maria João, 48 anos, diretora numa gestora de seguros de saúde. Em casa dos Neves jantam entre cinco pessoas (casal e três filhas, entre os 16 e os 22 anos) e sete (os dois namorados das mais velhas). Ao almoço é sempre uma incógnita quantos talheres se põem na mesa a principal razão para o desperdício alimentar nesta família.

Na mesa da cozinha vão pousando as compras da semana, que saem dos sacos de uma grande superfície. Trazem peixe e carne, que hão de ser congelados, iogurtes, fruta, bolachas, cereais, açúcar, leite, manteiga, massa para croissants, latas de atum e pão. Uma semana depois, em cima da mesma mesa expõe-se o desperdício: vários pedaços de pão, uma fatia de tarte de ovo, um queijo fresco que passou do prazo, uma banana quase podre, uma alface com folhas queimadas e recheio de ovo para croissants a ficar verde. Marta, a filha mais velha, já deitara para o lixo fatias de fiambre mal cheiroso e um limão com bolor. Voltamos a encontrar caixas com restos de refeições, mas dão-nos a garantia de que vão ser consumidos.

Aliás, nessa noite de domingo a ementa será uma sopa feita a partir do que sobrou do cozido à portuguesa do almoço.

Confiando nas estimativas, ao final de um ano, só Maria João terá desperdiçado 97 quilos de comida. O único estudo realizado em Portugal sobre este problema concluiu que o País perde cerca de um milhão de toneladas de alimentos por ano.

Descascar com cuidado

A investigadora Iva Pires, 54 anos, foi uma das responsáveis pelo PERDA, que monitorizou o desperdício durante o ano de 2012, através de um inquérito online a 800 famílias e dezenas de entrevistas em profundidade.

"Chegámos aos valores através de um complexo cálculo, mas em cada passo pode haver erros", desculpa-se a professora de sociologia da Universidade Nova de Lisboa, ressalvando que as conclusões são estimativas.

"As pessoas não tinham noção do que desaproveitavam, nem dos impactos ambientais, económicos, éticos e sociais de tal desperdício." No final do projeto, os investigadores notaram que as mentalidades começavam a mudar, num contexto de crise e desemprego, pois alguns dos entrevistados passaram a encher a lancheira com o que antes mandavam para o lixo.

Apesar dos resultados, a investigadora conclui que estamos abaixo da média mundial.

Portugal perde 17% dos seus alimentos, enquanto que no resto do mundo 33% do que se produz não acaba no estômago de quem tem fome. Hélder Muteia, 53 anos, representante da FAO (Food and Agriculture Organization, das Nações Unidas) em Portugal, conhece bem os números que lhe tiram o sono: uma em cada quatro calorias gerada no sistema agrícola mundial não cumpre o seu propósito "do prado à boca".

Nos países menos desenvolvidos, grande parte do desperdício acontece na fase da produção, por falta de infraestruturas e organização.

Nas zonas mais ricas, as perdas dão-se sobretudo na distribuição e no consumo.

"Há, por isso, que mudar esta cultura de abundância, alargando prazos de validade, ter atenção à forma como nos servimos ou até como descascamos os produtos."

Universidades a trabalhar

Hélder Muteia reconhece que há muita "criatividade" nas iniciativas da sociedade civil portuguesa, que vivem do voluntariado.

E se calhar nem sabe o que se passa na Universidade do Minho, desde o passado ano letivo. Durante dois meses, pesaram-se todos os resíduos saídos dos 22 pontos de alimentação e chegou-se ao impressionante número de quatro toneladas desperdiçadas por mês, a maior parte vinda dos tabuleiros das cantinas. Alarmada com estes números, Celeste Pereira, diretora do serviço alimentar, apressou-se a trabalhar com a população estudantil para reverter os números.

Assim nasceu a Menos Olhos que Barriga, uma ação de sensibilização para que não se leve no tabuleiro aquilo que não se quer comer. Alguns alunos constituem brigadas que abordam os colegas na cantina e nesses dias "os resultados são logo visíveis".

Sempre que se fala em inovação, aproximam-se as universidades da indústria, através da investigação e desenvolvimento. A reação dos produtores vai no sentido de otimizar os processos para reduzir, reutilizar, recuperar e reciclar. "O desperdício passa a ser encarado como um subproduto ou então como matéria-prima para outros ciclos produtivos, passando a estágios de valorização que pode ter aplicação humana, animal e até energética", explica Isabel Braga da Cruz, 43 anos, à frente da Knowledge Division da Portugal Foods, uma associação que representa os subsetores do setor agroalimentar.

A Fruut é um bom exemplo da inovação ao serviço do desperdício. Ao fim da tarde, no pomar da Quinta de Vilar, no distrito de Viseu, contabilizam-se 40 toneladas de maçãs apanhadas por 25 mulheres. Ainda dentro das paletes cinzentas, é fácil detetar as peças que irão para a grande distribuição e as que, por não cumprirem as normas, integram os 20 a 30 por cento de desperdício da colheita anual de 1 600 toneladas. Maçãs com diâmetro inferior a 6,5 centímetros, rachadas pelas intempéries ou com carepa, um defeito rugoso na pele provocado pelo frio, são agora aproveitadas pela Fruut para um snack crocante natural, sem adição de açúcar, galardoado com o Nutrition Award, na categoria Produto Inovação.

Uma simples ida ao supermercado valeu a Filipe Simões, 40 anos, o início de uma mudança de vida. Trabalhava então no marketing de uma editora no Porto, e cruzou-se com os Vilarzitos, umas tiras de maçãs desidratadas, docinhas e crocantes. Comeu--as e deu a provar à família e aos amigos. As reações positivas levaram-no até à Quinta de Vilar, onde se produziam os tais snacks, e onde, há mais de quatro décadas, Joaquim Cabral Menezes e Eva Raimann Cabral plantam maçãs em quarenta hectares.

Filipe propôs-lhe sociedade e fez nascer a Fruut, em 2013. No próximo mês começarão a ser vendidos novos produtos: maçã com chocolate, maçã Fuji (rodelas inteiras) e pera rocha. "Vamos trabalhar com cinco produtores da região Oeste. Comprando-lhes 250 mil quilos (os seus 20% a 30% de desperdício) resolvemos-lhes uma parte do excesso de stock", explica Filipe. Num ano, a Fruut já vendeu mais de milhão de embalagens, o que significa menos quatro milhões de maçãs (500 mil toneladas) no lixo.

Feia por fora, bonita por dentro

Apesar de ter avançado com a Fruta Feia há menos de um ano, tendo só dois pontos de entrega em Lisboa, e de trabalhar apenas com agricultores da zona do Oeste, a pequena cooperativa já roubou ao desperdício mais de 50 toneladas de hortícolas.

Chove a potes no Largo do Intendente, em Lisboa. Mas nem por isso a "colheita" da manhã fica na carrinha amarela. Uma mão cheia de voluntários encharca-se e trá-la para a Casa Independente, onde já estão 190 caixas para encher com produtos "feios".

Logo de manhã, Isabel Soares, 31 anos, e Maria Canelhas, 25, passaram pelas quintas de sete agricultores (há 32 associados) e trouxeram 1 800 quilos que nunca iriam ser consumidos. "O tomate e a cenoura são os rejeitados pelo calibrador, as alfaces muito grandes, as maçãs muito pequenas, os agriões têm folhas ratadas e as peras manchas na casca. São tantas as desculpas que às vezes me perco", diz Isabel Soares, presidente da cooperativa. As duas sócias pagam cerca de 50% do preço da fruta dita bonita, o valor justo para que seja viável a apanha.

Só assim podem vender os cabazes de quatro quilos a €3,5 aos 450 consumidores que apostaram nesta ideia (há 2 500 em lista de espera). O sonho é a expansão nacional, com uma espécie de franchising social.

Se estes hortícolas não tivessem o escoamento da Fruta Feia seriam dados ao gado, desfeitos em compotas, aproveitados para sumo... ou acabariam por apodrecer. Mas, em vez disso, enchem o saco de Helena Caldeira, 43 anos, que todas as semanas vai ao Intendente com a filha buscar estes produtos "muito mais saborosos".

Capital com zero desperdício?

"Lisboa é o primeiro município a ter uma estratégia para cumprir o objetivo de construir uma rede de recolha e distribuição de sobras que serão aproveitadas por quem mais precisa", nota João Gonçalves Pereira, do Comissariado Municipal para o Desperdício Alimentar. "Não queremos substituir as forças vivas da cidade que já fazem um excelente trabalho. Isso é para manter e replicar." A primeira reunião deste comissariado está marcada para 23 de outubro, para desenhar um plano curto, com ações concretas que entrará em vigor em janeiro. Objetivo: que, ao fim de dois anos, Lisboa seja a capital europeia, quiçá do mundo, com menos desperdício.

A Câmara é também signatária do compromisso que o secretário de Estado da Alimentação, Nuno Vieira e Brito, elaborou (ver caixa). Com ele, o Governo quis mostrar que está preocupado em atacar o problema, em cada fase do seu processo.

E até já deu sinais: quando a Rússia embargou a importação de frutas e legumes de origem europeia, foi dito aos produtores que entregassem as 2 900 toneladas (a quantidade que não puderam vender no mercado russo) ao Banco Alimentar. A União Europeia autorizou excecionalmente essa entrega, pagando um preço simbólico aos produtores nos outros países, as encomendas russas tiveram de ser destruídas.

Foi aproveitando as sobras que ninguém quer e direcionando-as para quem mais precisa, que nasceu, em 2001, a DariAcordar.

Um ano depois lançou-se o movimento Zero Desperdício. Com todas as pontes que já estabeleceram para entrega de comida confecionada a quem não tem forma de a comprar, recuperaram mais de um milhão e duzentas e cinquenta mil refeições teriam ido todas parar ao lixo. Isto só se tornou uma realidade porque a DariAcordar passou meses a trabalhar com a ASAE para enquadrar legalmente as doações, seguindo as regras de higiene e segurança alimentar. Hoje, orgulham-se de terem arregimentado para esta causa os refeitórios da Assembleia da República, do Banco de Portugal, da Casa da Moeda ou da Caixa Geral de Depósitos. Desde agosto, existe um manual de réplica do programa Zero Desperdício para espalhá-lo pelo País.

Neste momento, estão em implementação em cerca dez municípios. O grupo Jerónimo Martins foi um dos primeiros a estabelecer parceria com a DariAcordar, como mais uma medida de direcionar o que não podem ter exposto nos escaparates das lojas (os produtos doados em 2013 somaram 11 milhões de euros, a preço de custo).

Abençoada comida

Lídia Ferreira, 52 anos, coordenadora do projeto Mais Vida, conhece bem as traseiras do Pingo Doce dos Olivais.

Todos os fins de tarde, alguém da sua associação vai buscar os restos do take away para distribuir, no dia seguinte, às cerca de 40 famílias que procuram a ajuda do Mais Vida.

A comida já cozinhada tem quatro dias de validade mas o Pingo Doce retira-a um dia antes para poder entrega-la às instituições.

Sai diretamente da zona de frio, num carrinho de supermercado, para os frigoríficos desta associação.

Além do frango, do arroz e da sopa que leva daqui, Lídia ainda vai buscar mantimentos à REN e ao hospital CUF Descobertas, graças à parceria que a Junta dos Olivais fez com a Zero Desperdício.

A Refood também nasceu em 2011, da cabeça do americano Hunter Halder, 63 anos, chocado com toda a comida que os restaurantes deitam ao lixo (50 mil refeições por dia). Hoje, já existem cinco núcleos em Lisboa (e outros tantos quase a abrir), que mais não fazem do que bater à porta dos restaurantes aderentes, com caixas na mão, à espera que elas se encham. Depois, a partir das oito da noite, começa a entrega aos beneficiários.

O núcleo da Estrela funciona há um ano. Neste momento, apoia 73 famílias e tem 60 pessoas em lista de espera. Há 300 voluntários que se dividem pelas sete rotas que passam por 77 restaurantes, quatro Pingo Doce, quatro hotéis e quatro padarias.

Timidamente, deixando o carro em quatro piscas em frente da sede, Vera Soares Mendes, 22 anos, assoma-se à porta. Traz de lá dois sacos cheios de sopa, arroz de pato, fruta, frango, rissóis, arroz, massa, pão e iogurtes alimentos que irão parar à mesa da sua família. A mãe, 53 anos, advogada, sem ordenado desde janeiro, recorreu a esta associação para dar de comer às quatro filhas, entre os 19 e os 25 anos, que vivem consigo, perto do Rato. Como agradecimento, também se tornou voluntária na Refood. "Tudo o que vem de lá é um luxo. Ali acontecem milagres todos os dias", afirma, minutos antes de se benzerem para agradecer a refeição, à base do desperdício de outros.


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