quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A vida, o futuro... e as vacas

Chegou a Portugal o documentário mais importante desde 'Uma Verdade Inconveniente'. Por Ana Maria Ribeiro O realizador Darren Aronosfky (de 'Cisne Negro' e 'Noé') já o saudou como o filme que vai "abanar e inspirar o movimento ambientalista" nos próximos anos e muitos dizem tratar-se do documentário mais importante alguma vez feito sobre a degradação do planeta. Pelo menos desde o badalado 'Uma Verdade Inconveniente', de Davis Guggenheim, com Al Gore como estrela. 

'Cowspiracy', que fez a sua estreia nacional ontem, no Saldanha Residence, em Lisboa, já começou a mudar mentalidades. Em Portugal, o apresentador João Manzarra anunciou publicamente que depois de ver o filme tinha passado a ser vegan e que estava "chocado" por "só aos 29 anos" se ter tornado consciente do principal problema a ameaçar a sustentabilidade do planeta que habitamos. 

"Sempre me preocupei com o ambiente mas agora tornei-me mais ativo e acho que as figuras públicas podem e devem ajudar esta causa. Afinal, educação é salvação." 

Mas Manzarra não está sozinho. Também a atriz Mafalda Luís de Castro – vegetariana há dois anos e vegan há um – foi ver o filme, alertada pelas redes sociais, e aplaude a ousadia dos realizadores americanos, Kip Andersen e Keegan Kuhn. Segundo a atriz, de 25 anos, os dois conhecidos ativistas  dos direitos dos animais desviaram o foco do trabalho para a questão ambiental – evitando assim as críticas que "tipicamente perseguem vegetarianos e vegans". 

"As pessoas que estão habituadas a ridicularizar quem defende a causa animal não vão poder abrir a boca", garante Mafalda. "Pessoalmente, já assisti a vários documentários sobre este assunto, porque me interessa, mas este é muito diferente de tudo o que vi. Põe o enfoque na questão da sustentabilidade do planeta. E isso diz respeito a todos nós", conclui. 

ONU JÁ SABIA 

O filme – cujo título original faz um trocadilho com as palavras 'cow' (vaca) e 'conspiracy' (conspiração) sublinha os vários desafios ao ambiente que coloca a produção de animais para a alimentação humana. Não é novidade que tem efeitos nefastos no planeta, que é responsável pelo aquecimento global, desflorestação, poluição dos mares e extinção de espécies animais. 

Em 2005, as Nações Unidas divulgavam um relatório da Organização para a Comida e para a Agricultura que analisava as implicações ambientais da produção em massa de ovelhas, galinhas, porcos e cabras para alimentação. A produção bovina, porém, ultrapassa-as a todas em capacidade destrutiva. De acordo com os dados desse relatório, 18% dos gases que provocam efeito de estufa no planeta derivam da criação de gado. Ou seja, mais do que o uso de carros, aviões e transportes públicos juntos. 

Todos os anos, esta indústria lança no ar 32 milhões de toneladas de dióxido de carbono – isto é, 51% dos gases responsáveis pelo efeito de estufa. Nuno Sequeira, presidente da Quercus – Associação Associação Nacional de Conservação da Natureza, diz que em Portugal há sensibilidade para esta temática. 

"Está tudo documentado", começa por dizer. "No nosso país, é sabido que 80% da pegada hídrica [consumo de água envolvido na produção de bens e serviços que consumimos] está ligado à agricultura. E que 50% da produção agrícola não se destina à alimentação humana, mas sim à alimentação animal. Ou seja, produzimos cereais para alimentar os animais, para depois comermos os animais", diz. 

Para este responsável, é urgente repensar a forma como nos alimentamos. O que não significa que nos transformemos todos em vegetarianos. Ou vegans. "Se fizéssemos aquilo que aprendemos na escola, seria o ideal", afirma. "Toda a gente conhece a roda dos alimentos, a que agora se passou a chamar pirâmide dos alimentos, mas com os mesmos princípios. Precisamos de menos carne do que aquela que consumimos e até do que seria desejável para a nossa saúde. A que se devem as doenças do coração senão a este desequilíbrio?" 

O responsável da Quercus lembra que os padrões alimentares do Ocidente têm vindo a mudar nos últimos séculos, sobretudo para dar resposta ao número crescente de população. Atualmente somos mais de 7 mil milhões e em 2050 estima-se que chegaremos aos 9 mil milhões. A necessidade de produzir muitos alimentos, muito depressa, além dos efeitos ambientais, está ainda a reduzir a diversidade alimentar. 

"Desde 1900, a industrialização reduziu a diversidade alimentar em 75% na Europa e em 90% nos EUA", quantifica este responsável. "O que se torna tão mais grave quanto os povos em vias de desenvolvimento estão a adotar os nossos hábitos alimentares." 

TEMA TABU 

Chamar a atenção para a necessidade de alterar a forma como se pensa globalmente na alimentação não é fácil – como descobriram os realizadores de 'Cowspiracy' [ver caixa]. Em Portugal, tanto os produtores de carne como o Ministério da Agricultura e do Mar parecem considerar que a situação está "mais ou menos" controlada e desvalorizam o que consideram ser o "alarmismo excessivo".

 A engenheira Fátima Veríssimo, ligada a uma empresa de produção de carne de bovino, lembra que, ao contrário do que acontece noutros países, sobretudo na América do Sul, Portugal tem uma legislação apertada no que diz respeito ao controlo do impacto ambiental da pecuária. "Entre nós, a criação dos animais é feita em extensivo, ou seja, os animais crescem ao ar livre, de acordo com o seu ritmo natural. Não há engordas. 

Na Europa, para se conseguir uma licença para a engorda, é preciso assegurar o tratamento de fezes e águas", garante. O mesmo assegura fonte do Ministério da Agricultura e do Mar. "Os produtores agrícolas e pecuários são os primeiros a desejarem que seja alcançada uma sustentabilidade no uso dos recursos das suas explorações (água e solo), uma vez que disso depende a viabilidade da sua atividade", lê-se em nota enviada à 'Domingo'. E prossegue a mesma fonte explicando que, "no quadro da aplicação da recente Reforma da Política Agrícola Comum em Portugal", neste momento está-se a promover "o pastoreio extensivo, o apoio à biodiversidade doméstica e a limitação de encabeçamentos por hectare". Nos EUA, a discussão tem sido menos pacífica. 

Assim que 'Cowspiracy' foi apresentado, detratores do documentário apressaram-se a contrapor com o trabalho do biólogo Allan Savory – ele próprio agricultor e ambientalista famoso –, que defende que quando o gado é criado ao ar livre e alimentado com pasto (e não com rações), está, pelo contrário, a combater o aquecimento global e a restabelecer o nível de carbono do solo. 

Mas nem Allan Savory contradiz os dados científicos: as necessidades de proteína são mesmo baixas num adulto. Segundo os médicos – e citando, por exemplo, o Dr. Mehmet Oz – basta-nos comer um ovo por dia ou 85 gramas de frango, peru ou bife (que cabem na palma da mão) para suprir as nossas necessidades proteicas. Que, de qualquer forma, podem ser substituídas por proteína de origem vegetal. 

E lá vai o tempo em que se dizia que os vegetarianos não tinham tanta saúde como os omnívoros. Na lista dos vegetarianos famosos inclui-se o escritor britânico George Bernard Shaw, que morreu aos 94 anos, ativo até ao fim. 

Em Portugal, a cantora Romana, de 35 anos, é vegetariana desde os 15 e criou a filha, de 11 anos, sem proteínas animais. "É a criança mais saudável que conheço – nunca está doente", garante, lamentando não ter visto ainda o 'Cowspiracy'. "Tornei-me vegetariana quando me apercebi de que estava a contribuir para o sofrimento dos animais. Só mais tarde me vim a aperceber do bem que estava a fazer a mim própria, à minha saúde e ao planeta." 

SOLUÇÕES PARA O FUTURO 

Uma das pessoas a congratular-se com a apresentação do documentário americano nas nossas salas é Rita Silva, conhecida ativista dos direitos dos animais e responsável da ONG (organização não  governamental) ANIMAL. Amiga de um dos realizadores [Keegan Kuhn] há muito tempo, diz que esta é uma discussão que "já tardava". 

"Contra factos não há argumentos e ninguém pode negar os números que os meus colegas apresentam no documentário", diz. "A questão da sustentabilidade do planeta é inevitável para todos nós", diz ela, que está bastante otimista quanto ao futuro. "O homem é um animal conhecido pela sua extraordinária ca-pacidade de adaptação. O mundo evolui e nós vamos evoluir com ele, adaptando-nos. Como sempre."

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