domingo, 8 de fevereiro de 2015

Que fazer com 900 mil hectares de sequeiro no Alentejo

Publicado no "Correio Agrícola" nº 164, Outubro de 2002


Miguel Mota*

A desorientação que reina na agricultura portuguesa evidencia-se em muitos aspectos. Um dos mais fáceis de detectar é o panorama triste que vemos em qualquer supermercado, na abundância de produtos agrícolas estrangeiros que tínhamos obrigação de produzir aqui, melhores e mais baratos. Batatas, cebolas, alfaces, cenouras, alhos, melões, melancias, uvas etc. etc. etc. são produtos que Portugal nunca devia ter de importar do estrangeiro, pois aqui os devia produzir melhor e mais baratos. Àqueles que dão a desculpa de pagarem mais caros alguns factores de produção, lembra-se que um dos mais importantes desses factores, a mão de obra, é aqui significativamente mais barata. O que considero o cúmulo dos cúmulos dessa aberração é encontrar, nalguns supermercados, rabanetes vindos da Holanda. Como já escrevi algures (2):
"Que se passa com a agricultura portuguesa, que tanto se queixa - e, nalguns casos, com razão - das dificuldades com certas culturas, para se deixar bater nos mercados nacionais na venda de rabanetes? Como é possível que a agricultura portuguesa não abasteça o mercado nacional de rabanetes bons e baratos de tal forma que o País não tenha que pagar os bons salários dos agricultores holandeses e os bons salários e os muitos outros elevados encargos do transporte de mais de 2.000 km, para comer rabanetes!
Que é que está errado na agricultura portuguesa? É a produção, que não "descobriu" que há um mercado português para rabanetes? Os holandeses parece que o descobriram... É a organização da comercialização dos produtos agrícolas portugueses?"
Um outro aspecto dessa desorientação encontra-se num artigo, em forma de interrogação, "Que fazer com 900 mil hectares de sequeiro no Alentejo?", no jornal "Público" de 14-6-2002.
Permito-me responder à pergunta dizendo - sem interrogação - o "Que fazer com 900 mil hectares de sequeiro no Alentejo".
É óbvio que se tem muito mais domínio da agricultura no regadio do que no sequeiro. Sendo a água um dos factores mais importantes para a produção agrícola, o regadio permite um controle de que o sequeiro não dispõe. Mas isso não significa ser impossível fazer agricultura no sequeiro, mesmo nas condições difíceis do Alentejo.
As dificuldades do Alentejo para a agricultura de sequeiro são, em primeiro lugar, a irregularidade do nosso clima, que não permite saber, no começo do ano agrícola, como vai ser o regime pluviométrico. Mas a esta irregularidade do clima, geral para todo o País, acresce o facto de, na enorme maioria dos anos (as excepções são bastante raras), a primavera ser quase inexistente no Alentejo, passando-se, quase sem transição, dum inverno frio e chuvoso para um verão sêco e muito quente.
Há dezenas de anos que venho chamando a atenção para duas práticas que precisam de grande alteração na agricultura alentejana: a drenagem das terras e as rotações das culturas. Quando se fizer o que venho preconizando há muitos anos, o panorama pode mudar drasticamente e admito que até venha a ser possível fazer trigo com bons resultados económicos em grande parte desses 900 mil hectares.
Não há espaço, num artigo desta natureza, para explicar em pormenor o que é necessário fazer, pelo que refiro alguns artigos em que tratei o assunto (1, 3).
Em relação à drenagem, o meu ilustre colega e amigo Eng.º Sardinha de Oliveira demonstrou que, ao contrário do que muita gente julga, a produção cerealífera no Alentejo sofre muito mais nos anos muito chuvosos do que nos anos relativamente secos. A chuva concentra-se normalmente no período de Dezembro a Fevereiro e, especialmente nas terras mal drenadas, as raízes não se desenvolvem em profundidade, graças a esse excesso de água. Quando, muito rapidamente, se passa do inverno para o verão, as curtas raízes, à superfície, não têm possibilidade de fornecer à planta a água e os elementos necessários ao bom enchimento do grão. Não há muito tempo, num destes anos, um agricultor mostrou, na televisão, as muito pequenas raízes das plantas do trigo, consequência desse encharcamento no inverno. Quando, pelo contrário, a chuva é relativamente escassa no inverno, época em que a evapotranspiração é pouca, as plantas podem desenvolver raízes maiores, que vão explorar o solo em profundidade e lhes permitem absorver água dessas camadas quando a superfície já está sêca, dando uma produção mais alta. O antigo sistema de armação da terra em espigoado tinha, entre outras funções, dar saída à água em excesso.
Em relação às rotações, começo por referir alguns ensaios feitos há quase meio século, em Elvas, por colegas meus, que mostravam a espectacular diferença que se conseguia com o incremento da cultura de algumas espécies forrageiras que, além de permitirem um grande aumento do número de ovelhas por hectare de terreno, aumentavam muito o nível de fertilidade do solo, com excelentes resultados na cultura de trigo que se lhes seguia. Esses trabalhos não tiveram continuidade.
Umas tentativas que fiz para obter meios para realizar, com uma equipa, uma série de ensaios de rotações que, ao fim de cinco anos, deveriam começar a dar informações preciosas, não tiveram qualquer êxito. Sei que há algum trabalho em marcha há anos, mas é insuficiente para a importância do problema.
Outras possibilidades há, certamente. Para além de outras culturas, a caça e parques turísticos não são para desprezar. Com melhor pesquisa de águas subterrâneas, não será impossível transformar alguns hectares em regadio, com o respectivo valor acrescentado.
Infelizmente, no monstruoso descalabro que tem vigorado no Ministério da Agricultura, os erros cometidos - alguns de bradar aos céus! - e as escandalosas inversões de valores, com a colocação em lugares de chefia de pessoas de bem demonstrada fraca  capacidade, ignorando outras de vasto e valioso curriculum, levaram a agricultura portuguesa ao estado em que está e que alguns pretendem agravar ainda mais. Os erros (por incapacidade ou deliberados) cometidos nos últimos dezasseis anos causaram ao País maior prejuízo do que os desmandos da famigerada Reforma Agrária. Destes, já o País recuperou; dos outros só poderá recuperar com um grande e intensivo Programa de Investigação Agronómica (que descubra, constantemente, as formas de agricultar melhor) e de Extensão Agrícola (o serviço que levará até aos agricultores os conhecimentos existentes e os que vão sendo produzidos pela Investigação). Apesar de muito degradado, o Ministério da Agricultura ainda possui técnicos bem qualificados e infra-estruturas que lhe permitem arrancar imediatamente com um tal Programa, que já propus, sem qualquer resultado.
O actual Ministro da Agricultura, além de possuir um magnífico conhecimento do que se passa na União Europeia e na sua Política Agrícola Comum, é um Engenheiro Agrónomo especialista (em muito alto grau) de Economia Agrícola. Por esse facto está nas melhores condições para apreciar o que são os fabulosos resultados dos referidos serviços de Investigação Agronómica e de Extensão Agrícola, como ainda não há muito tempo demonstrei (4).
Se souber e quiser pôr em marcha esse Programa Intensivo, os resultados começarão a aparecer antes do fim da legislatura. Se o não fizer, continuará a afundar a agricultura portuguesa e, com ela, a nossa economia. E ajudará a afundar o PSD, como fizeram os ministros da Agricultura do Prof. Cavaco Silva e ao PS os do Eng.º Guterres. O pior de tudo é que, dessa forma, se continuará a afundar o País.

Referências

1 - Mota, M. - Drenagem e rotações, dois temas da maior importância para a agricultura do Alentejo.  DIAgrícola Nº 14, de 20-6-89
2 - Mota, M. - Rabanetes da Holanda!. Vida Rural Nº 21/1992
3 - Mota, M. - A drenagem das terras e a produção de cereais. Linhas de Elvas de 27-5-94
4 - Mota, M. - Investigação Agronómica e Extensão Agrícola, as bases fundamentais do Desenvolvimento Rural. Vida Rural de Maio de 1999

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* Investigador Coordenador e Professor Catedrático, jubilado

Fonte: Autor



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