segunda-feira, 4 de maio de 2015

O segredo do vinho português descobre-se cada vez mais na vinha

Por Manuel Carvalho
02.05.2015

Depois de décadas de reestruturação, como está o património das vinhas em Portugal?
Em Portugal há vinhas nas planícies do sul e nas montanhas do Norte, perto das praias ou nas regiões semiáridas do interior e se a maior parte da área cultivada com esta planta fica longe das grandes cidades, há videiras bem no coração das áreas urbanas do Porto e de Lisboa. Portugal é um país de vinhas, muito mais do que qualquer outra nação da orla mediterrânica - 2,59% do seu território está ocupado com esta cultura e enquanto a Itália se aproxima com 2,55%, a Espanha fica-se pelos 2,01% e a França 1,45%. Mas, mais do que ser um país com muitas vinhas, Portugal é um lugar de vinhas diferentes. O seu património de castas é único. Saber o que fazer com este património, discutir que castas devem ser privilegiadas, perceber se a área actual de vinha é suficiente ou se são necessárias novas plantações e fazer perguntas sobre se está na hora de parar a reestruturação e conservar as vinhas velhas que restam são tópicos cruciais para se identificar o rumo do vinho português no futuro.

Nas últimas duas ou três décadas deram-se passos gigantes nas artes de fazer o vinho, mas a revolução que se produziu nas vinhas não ficou atrás. O balanço do que se fez nas quintas ou nas herdades "é extremamente positivo", já que "quer do ponto de vista qualitativo, quer do ponto de vista da produção, as nossas vinhas estão hoje muito melhores", diz Frederico Falcão, presidente do Instituto da Vinha e do Vinho, o órgão do Estado que regula o supervisiona do sector. Nas últimas décadas, a área de vinha sofreu uma lenta mas continuada redução (ronda agora os 220 mil hectares), como aliás aconteceu em todos os países europeus. Mas a que resistiu foi alvo de uma intensa reestruturação.

Para se ter uma ideia desse esforço, entre o ano 2000 e 2015 modernizaram-se 50.800 hectares de vinhas, a uma média de 3.800 hectares por ano. Ou seja, neste período de tempo, quase um quarto da área nacional de vinha foi alterada. E em 2016 esse esforço vai continuar com a modernização de mais cinco ou seis mil hectares de vinha, o que implicará um investimento de 85 milhões de euros. Nos projectos já aprovados no âmbito do programa Vitis, as novas vinhas vão ser plantadas principalmente com as castas Touriga Franca (744 hectares), Aragonês/Tinta Roriz (533 hectares) e Touriga Nacional (531 hectares). No passado recente, a política agrícola europeia disponibilizou ainda fundos para o arranque de vinhas situadas em zonas menos interessantes e permitiu a transferência de direitos de plantação para zonas mais nobres.

O investimento e a modernização do vinhedo foi um passo obrigatório para o vinho português poder exibir as melhorias dos anos recentes. "No final dos anos 90 descobrimos a tecnologia e começámos a fazer vinhos correctos, mas indiferenciados. Quando quisemos dar um salto qualitativo e fazer vinhos com carácter, percebemos que tínhamos de procurar a identidade dos vinhos na vinha", diz Jorge Moreira, enólogo da Real Companhia Velha, da Quinta de la Rosa e autor do consagrado Poeira, do Douro. Nas reestruturações que foram entretanto feitas, equipas de enólogos e de viticultores  dedicaram-se a desenhar vinhas novas partindo para o terreno com já um conceito de vinho na cabeça. Nesta discussão, a escolha das castas tornou-se um ponto crucial.

A prova dessa preocupação está no extraordinário crescimento das plantações com Touriga Nacional. Há 30 anos, a "touriga", como é familiarmente designada, era apenas mais uma casta perdida no labirinto das vinhas do Douro e do Dão. A sua escassa produtividade tornava-a pouco simpática, embora tenha sido desde sempre o esteio dos grandes tintos do Dão que conseguem durar décadas na garrafa. Depois de ser estudada nos anos de 1990 por especialistas como Nuno Magalhães, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e de ser adoptada por enólogos ousados como José Ramos Pinto Rosas, a Touriga tornou-se um sucesso e de imediato passou a ocupar o lugar de porta-bandeira dos vinhos de Portugal. Hoje é a quinta variedade mais plantada em Portugal, ocupando 8.100 hectares de vinhas em praticamente todas as regiões do país.

Para muitos críticos, essa expansão da Touriga foi tão rápida e acentuada que se corre o risco de o vinho português se "touriguizar", ou seja, de se tornar uniforme e de esconder numa única palete de aromas e sabores a enorme variedade regional e genética da produção nacional. Jorge Moreira discorda dessa visão. "Começa a ficar bem dizer mal da Touriga Nacional", diz, "mas nos vinhos de top que não vêm de vinhas velhas é esta a casta que sempre se distingue", acrescenta. Para ele, "a Touriga Nacional tem a mesma identidade e a mesma força de carácter das grandes castas internacionais, como a Cabernet Sauvignon ou a Syrah. Tem aromas exclusivos, carácter e envelhece bem em garrafa".

A discussão sobre as castas encontra em Portugal uma amplitude que não existe em nenhum outro produtor de vinhos do planeta. Os produtores portugueses têm à sua disposição 343 variedades autorizadas para as suas plantações, e entre estas 268 são castas nativas – convém notar que cada região adoptou o seu próprio leque de castas admissíveis para o seu território. É por isso que nos planos de promoção internacional Portugal se apresenta como "um mundo de diferença". Uma diferença que se se faz pela evolução e adaptação das plantas ao solos e climas do país ao longo de séculos, mas também por uma origem remota, já que está cientificamente provado que após a última grande glaciação a vitis sobreviveu em refúgios na Península Ibérica e não apenas no Médio Oriente, de onde se expandiu, como até há pouco se acreditava.

Esse universo alargado de variedades da videira é, no geral, pouco estudado e conhecido. A Associação para o Desenvolvimento da Videira, Porvid, lançou um projecto inovador, com base em Pegões, que visa conservar essa riqueza genética. Num tereno de 273 hectares cedido pelo Estado serão cultivados e protegidos 50 mil genótipos de 250 castas nacionais – cada casta tem diferentes genótipos que, em muitos casos, dão origem a produções e tipos de vinho distintos. A ideia é conservar para o futuro a possibilidade de os produtores disporem de um leque quase ilimitado de castas, que em teoria lhes permitirá conceber vinhos de estilos muito variados. Porque é convicção generalizada entre viticultores e enólogos que se desconhece muito mais do que o que se sabe sobre as castas indígenas.

Jorge Moreira reconhece essa realidade. "O nosso conhecimento sobre as castas é muito pequeno. No Douro temos dezenas de variedades, mas só cinco é que foram estudadas. É um conhecimento muito redutor", diz. Até porque as conclusões obtidas nos anos de 1980 estão hoje postas em causa. Castas como a Barroca, a Tinta Roriz ou a Tinto Cão, que na altura mereciam todos os elogios, suscitam hoje muitas dúvidas aos produtores. E muitas outras, como a Sousão, são alvo de um renovado interesse. A Real Companhia Velha tem um projecto que aposta na descoberta de novos vinhos de castas "estranhas", como a Rufete, Tinta Francisca, Samarrinho, Arinto ou Sémillon. Peguemos no caso da Rufete. "Há uns anos, quando se privilegiavam vinhos carregados de cor, de volume e álcool, essa casta não tinha interesse. Mas agora que há uma procura por vinhos mais elegantes, pode ter muito potencial", diz Jorge Moreira.

O Estado não se tem envolvido nas opções dos agricultores em relação às castas, deixando as escolhas à livre iniciativa dos investidores. Mas, no futuro próximo, admite discriminar positivamente os apoios financeiros destinados a plantações com as variedades indígenas, afirma Frederico Falcão. Neste processo, vai surgir a discussão sobre o que são, de facto castas nacionais – algumas, como a Jaen (a Mencia da Ribeira Sacra, na Galiza), ou a Alicante Bouschet, a casta rainha do Alentejo, foram "nacionalizadas" e ninguém as vê como intrusas. Mas há quem questione a expansão acelerada que algumas castas internacionais conheceram em Portugal nos últimos 20 anos. A Syrah, por exemplo, é já a décima casta mais plantada em Portugal, ocupando uma área de 3.900 hectares.

A mudança das regras europeias para o sector do vinho cria uma boa oportunidade para se discutir o que fazer e para se acertarem estratégias. Porque a partir de 2018 não há garantias de ajudas ao investimento na reconversão das vinhas – até lá haverá um fundo de 65 milhões de euros por ano. Depois, deixará de haver direitos de plantação para começar a ser praticada a política de autorizações de plantação. Até agora, um produtor podia arrancar a sua vinha e vender os seus direitos de plantação a outro interessado. A partir de Janeiro, ou esse produtor replanta a sua vinha num prazo de três anos ou perde esses direitos. Para a instalação de novas vinhas passará a haver uma bolsa correspondente a 1% da área de cada estado-membro para distribuir, o que no caso português representa 2.200 hectares por ano.

Esta bolsa suscita diferentes apetites por parte das diferentes regiões. O Alentejo e, principalmente, o Douro, a braços com excedentes de produção, não parecem muito interessados em alargar as suas áreas vinha. Mas a região dos Vinhos Verdes vê essa possibilidade como uma urgência. "Vivemos um período de stocks particularmente baixos", diz Manuel Pinheiro, presidente da Comissão Vitivinícola Regional. Ou seja, a região está em dificuldades para responder á procura crescente dos seus vinhos, em particular os Loureiro e Alvarinho – para se ter uma ideia, as exportações de vinhos brancos cresceram 14% no primeiro trimestre deste ano. No caso de nenhuma região querer participar na distribuição das novas autorizações, os Vinhos Verdes admitem ficar com tudo. "O Conselho Interprofissional já enviou um pedido ao secretário de Estado para que a região possa aceder ao máximo de licenças de plantação atribuídas", diz Manuel Pinheiro. Para o presidente da Comissão dos Verdes, "a viticultura é a nova fronteira do Vinho Verde", sublinhando que a região "tem de reforçar a sua capacidade de produção".

Neste novo enquadramento político e financeiro, a reestruturação de vinhas deixará de ser uma prioridade. Frederico Falcão admite que o ritmo de investimento na modernização das vinhas se reduza, mas não vê nisso um problema de maior. "Muito do que havia a fazer está feito", nota, pelo que "abrandar o ritmo a reestruturação pode ser bom". Porquê? Muito provavelmente, as vinhas de pouca qualidade ou as que não tinham viabilidade económica já foram abandonadas ou modernizadas e as que ficaram, principalmente as vinhas velhas, são cada vez mais objecto de devoção dos enólogos. "Agora começa-se a olhar para as vinhas velhas e é importante que isso se faça – por causa da sua qualidade e para se evitar a sua erosão genética", acrescenta o presidente do IVV.

Um pouco por todas as regiões, as empresas têm apostado em produção das vinhas velhas para fazer alguns dos seus topos de gama – ou seja, estas vinhas revelaram um potencial económico não menosprezável. Porque as videiras com 30 ou 40 anos têm uma aptidão produtiva especial. As suas raízes profundas salvam-nas do stress hídrico nos anos mais secos e disponibilizam-lhes uma maior riqueza de nutrientes, tornando as maturações das suas frutas mais equilibradas. Não se sabe ao certo qual é a área ocupada por estas vinhas no país, mas em regiões com alguma densidade histórica, como o Dão, a Bairrada ou o Douro, muitas sobreviveram e são hoje protegidas como pequenos tesouros do património genético e como fontes de vinhos de excepcional qualidade – veja-se o caso do Legado, um vinho da Sogrape produzido a partir da centenária vinha do Caêdo, no Douro, onde um hectare de videiras produz apenas mil quilos de uvas.

Com uma parte significativa da sua área modernizada e apta para responder aos novos desafios, o sector do vinho entra agora numa fase de balanço entre o passado e o presente que tende a acentuar a sua originalidade no plano internacional. Haverá cada vez mais vinhos orientados para o padrão internacional do consumo, feitos com Syrah ou Petit Verdot e regiões como Lisboa e o Tejo parecem mais vocacionadas para disputar com enorme sucesso as grandes tendências do mercado do que em procurar afirmar as suas identidades em segmentos específicos de consumidores. Mas, no geral, a imagem que o país começa a ter lá fora e os prémios internacionais que os vinhos portugueses continuam a acumular mostram que o arcaísmo de outros tempos é hoje uma enorme vantagem. Sem esse arcaísmo, Portugal jamais poderia ter conservado um património tão vasto e tão original de castas com as quais se pode fazer quase tudo.

Uma pequena ilha no mundo da vinha
A videira é uma planta familiar na paisagem portuguesa, mas Portugal está longe de poder entrar em comparações com a área de vinha dos principais produtores mundiais. De acordo com a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), a Espanha tem a maior área de vinha do mundo (1.018 milhões de hectares), seguindo-se a França (800 mil hectares), a Itália (769 mil), a China (570 mil), a Turquia (517 mil) e os Estados Unidos (407 mil). Portugal, com os seus 224 mil hectares de vinha, ocupa a sétima posição neste ranking, mas quando se fala em produção de vinho, o país ocupa uma posição bem mais modesta – está em 11º lugar, o que sublinha a escassa produtividade da vinha nacional.

Nos últimos anos, o que aconteceu nas grandes tendências da economia mundial repetiu-se na situação da vinha e do vinho. A área global de vinha reduziu-se de oito para 7.5 milhões de hectares na última década, mas nesse recuo a Europa tem particular responsabilidade. Se em 2003 o seu peso na vinha mundial ascendia a 62.5%, hoje vale 55%. Como seria de esperar, a regressão da Europa é proporcional ao progresso da Ásia, cujos vinhedos passaram de 19.4 para 24% do total mundial. Um olhar mais atento permite depois constatar que neste surto a China teve um papel crucial. A sua vinha valia em 2003 menos de 4% da área total, mas actualmente já representa 9% - um crescimento de 127%.

Mas se a área mundial de vinha diminuiu, a produção aumentou 8%. O aparente paradoxo explica-se pela entrada no sector de áreas de vinha mais produtivas e de plantações mais voltadas para o volume. É essa mudança que explica a retracção na produção europeia, que passou de 52.9% do total mundial para 40.9%. Pelo contrário, a Ásia aumentou a sua quota de 20.3 para 29.8%. Actualmente, a China produz o dobro de Portugal (11.7 milhões de hectolitros contra 5.8 milhões de Portugal, em 2014). Mas permanece longe dos registos da França (46 milhões), da Itália (44 milhões) e da Espanha (38 milhões). Em boa parte porque uma grande parte da área de vinha chinesa está voltada para a produção de uvas frescas.

Sétimo em área de vinha e 11º na produção de vinha, Portugal ocupa uma posição intermédia entre estas duas no que diz respeito à exportação. Quem continua a mandar no negócio do vinho é a França, que em 2013 exportou um valor superior ao acumulado entre o segundo e terceiro maiores exportadores mundiais (a Itália e a Espanha), vendendo para o exterior 7.8 mil milhões de euros. Portugal exportou 720 milhões de euros, naquele que é o seu quinto ano consecutivo de crescimento. Está lado a lado com a Argentina, mas o seu desempenho está longe de comparar com o dos Estados Unidos ou da Alemanha no que diz respeito ao ritmo de crescimento das suas vendas. No top dez das exportações, um único país recuou nas exportações nos últimos anos: a Austrália. A Nova Zelândia, principalmente á custa dos seus Sauvignon Blanc, duplicou o seu volume de negócios. Um dado que serve como bom ponto de partida para a discussão sobre as castas indígenas e as suas vantagens.

Sem comentários:

Enviar um comentário