sábado, 27 de junho de 2015

O papel da agricultura familiar na sustentabilidade dos territórios

OPINIÃO

Ricardo Vicente


A PAC tem um historial desfavorável às agriculturas do sul da Europa. Apesar desta desadequação crónica existe margem de manobra para os países do sul concretizarem algumas adaptações e minimizarem as consequências negativas.

19 de Novembro, 2014 - 00:04h

A Política Agrícola Comum, os mercados locais e a importância das agriculturas familiares na sustentabilidade dos territórios:

2014 é o primeiro ano do novo quadro comunitário que se prevê durar até 2020. Já estão definidos os valores que subsidiarão os vários países da comunidade europeia e estão desenhadas as regras comunitárias para a Política Agrícola Comum (PAC). Caberá a Portugal um orçamento de 8,5 mil milhões de euros, a distribuir entre 2 pilares distintos: Pagamentos Diretos e o Programa de Desenvolvimento Rural.

Pensar a sustentabilidade dos diferentes sistemas agrários em Portugal e, a uma escala diferente, os seus papéis na sustentabilidade territorial, obriga a uma interpretação das consequências da aplicação da PAC nesses territórios. As agriculturas familiares representam a quase totalidade da agricultura nacional e até mesmo europeia e são muito diversas, em função das culturas praticadas e das especificidades locais. No contexto português, o agricultor médio tem 63 anos de idade e apenas o 1º ciclo de escolaridade, 1/3 da população agrícola tem outra atividade económica complementar e apenas 1/5 dos agricultores trabalha a tempo inteiro na exploração agrícola (RA2009). Esta realidade é bastante distinta do centro e norte da Europa, onde a profissionalização e os níveis de capitalização das explorações agrícolas são muito superiores.

A PAC tem um historial desfavorável às agriculturas do sul da Europa, desde a sua origem é uma ferramenta que cria desigualdades produtivas entre países e que gera dependências alimentares internacionais através da destruição do potencial produtivo dos países menos favorecidos. Foi e continua a ser estruturada para os modelos de produção agrícola e societais do centro e norte da Europa, não considerando as especificidades do sul, onde as culturas, os modos de produção e as dinâmicas das atividades agrícolas são muito distintas. Apesar desta desadequação crónica existe margem de manobra para os países do sul concretizarem algumas adaptações e minimizarem as consequências negativas, no entanto os diversos Governos que implementaram as PAC em Portugal nunca demonstraram tal interesse.

1º Pilar da PAC - Pagamentos Diretos

Em Portugal, nos quadros comunitários anteriores, mais de 50% dos apoios foram aplicados no 1º pilar, Pagamentos Diretos, e na sua maioria distribuídos pelos agricultores de forma desvinculada da produção e do emprego, com base em históricos de atividade muito distantes da realidade no momento dos pagamentos e em atividades agrícolas típicas do centro e norte da Europa mas menos importantes no panorama nacional. Assim, o principal fator que determinava a atribuição e a distribuição de uma grande fatia dos apoios comunitários era a posse da terra, quanto maior o proprietário maior o apoio atribuído. Os grandes proprietários nacionais cresceram e especializaram-se na captação de subsídios, ganharam hegemonia sobre uma vasta área do território e impediram a instalação e o desenvolvimento de outras atividades. Fizeram-no por duas vias: os apoios por eles captados não foram aplicados noutros investimentos; e o espaço e os recursos naturais por eles dominados deixaram de estar disponíveis. Esta realidade não mudou com mais uma nova reformulação da PAC. O anterior Regime de Pagamento Único (RPU), que distribuía mais de 70% do valor do 1º pilar, passou a designar-se Pagamento Base, funcionando da mesma forma, isto é, com base num histórico de produção desatualizado e desvinculado da produção real e do emprego, e distribui 48% do volume financeiro do primeiro pilar. Só quem tem histórico de RPU se poderá candidatar ao Pagamento Base.

Para perfazer o valor total do anterior RPU, 30% do volume do 1º pilar da nova PAC está anexado à medida Greening, sendo o seu pagamento proporcional ao pagamento base. Mais uma vez, o acesso ao apoio depende do histórico de RPU no quadro comunitário anterior. Esta medida é supostamente uma mais valia do ponto de vista ecológico e ambiental, obrigando à prática de rotações, à existência de pastagens permanentes e a um mínimo de áreas ecológicas, no entanto, foi tão desvirtuada que se transformou numa mera ferramenta de distribuição de fundos e perdeu a sua utilidade. Recentemente saiu um estudo que comprova que mais de 80% das explorações agrícolas nacionais não são obrigadas a aplicar dois terços das suas obrigações nesta medida.

A sustentabilidade dos territórios e a criação de dinâmicas socioeconómicas capazes de envolver a população local e os seus visitantes, possibilitando a criação de emprego e a fixação da população com melhorias das condições de vida, não podem ser bloqueadas por um sistema estático de financiamento que gera tensões contrárias às dinâmicas de desenvolvimento local e permitem a perpetuação de práticas que expropriam os atores locais e a população do seu próprio território e recursos naturais. Não só as agriculturas familiares mas também as restantes actividades socioeconómicas são prejudicadas nesta situação.

2º Pilar - Programa de Desenvolvimento Rural

Ao nível do 2º Pilar, Programa de Desenvolvimento Rural (PDR), tem-se cometido de forma permanente a injustiça de assumir que o desenvolvimento rural coincide com o desenvolvimento agrícola, mesmo quando a maioria da população rural não tem atividade agrícola. Mais uma vez a quase totalidade do PDR corresponde a agricultura, apesar de estar dividido em quatro componentes distintas: conhecimento (2,3%), produção (44%), ambiente (46,8%) e desenvolvimento local (5%). É fácil tirar esta constatação analisando as medidas de cada componente, até uma boa parte do desenvolvimento local corresponderá a agricultura. Para além de dificultar o desenvolvimento rural, na sua multiplicidade de atividades socioeconómicas, esta estruturação do PDR dificulta também o desenvolvimento da componente multifuncional que hoje reconhecemos na agricultura, pois a sua valorização depende também do desenvolvimento territorial não agrícola. A agricultura familiar é especialmente lesada por esta situação.

Nas medidas de apoio à produção, onde se incluem quase todas as ajudas para a melhoria das condições de produção e de escoamento dos produtos agrícolas, destaca-se no atual PDR o diferenciamento dos níveis e tipos de apoio disponíveis para agricultores membros de Organizações de Produtores (OP) e para as próprias OP. A canalização de fundos para as OP tem sido justificada pela necessidade de concentração da oferta e de organização da produção e escoamento do produto, de forma a procurar maior capacidade negocial e a valorizar a produção, em especial num momento em que muitos agricultores vendem produtos a preços inferiores aos custos de produção. Podendo a justificação ser válida, é importante perceber em que condições se estão a tomar estas medidas, pois atualmente são poucas as entidades oficialmente reconhecidas como organizações de produtores que realmente o são e a maioria dos agricultores nacionais não está integrado em nenhuma OP. O PDR prevê a distribuição de apoios para Organizações de Produtores mas não se criam mecanismos para promover a construção dessas organizações, partindo-se do princípio que elas já existem. Pode estar em marcha um plano de financiamento direto das estruturas empresariais de comercialização de produtos agrícolas e de criação acelerada de dependências entre os agricultores e estas empresas, destruindo as ligações diretas entre a produção e o mercado em vez de as fortalecer.

Agricultura familiar: construtora e fator de sustentabilidade do património paisagístico da Região Demarcada do Douro

18% da área total da Região Demarcada do Douro (RDD) é vinha, sendo a sub-região Baixo Corgo o local onde a área de vinha assume um maior domínio do território, com 32,4%. Na RDD existiam em 2008 quase 40 mil proprietários de vinha, dos quais 61% possuía menos de meio hectare e os proprietários com mais de 10ha representavam apenas 30% da área. Numa região onde a área de vinha é fator fundamental para a valorização da sua paisagem e quase 80% da área da cultura não é mecanizável, devido aos declives elevados e à sistematização das vinhas implementadas, as necessidades de mão-de-obra para a manutenção do sistema cultural e da paisagem são muito elevadas. A agricultura familiar assume neste contexto um papel preponderante na sustentabilidade deste território, pois possibilita a manutenção da paisagem através do acompanhamento das explorações agrícolas familiares, mas também porque são fonte de mão-de-obra assalariada que opera nas restantes explorações agrícolas. Com a tendência de abandono da atividade agrícola por parte dos filhos dos pequenos proprietários e perante a impossibilidade de mecanizar as operações na maioria das vinhas implementadas, corre-se o risco de haver o abandono de uma área de vinha substancial da RDD, com consequências negativas para a valorização do património paisagístico e histórico da região e para a sustentabilidade deste território. A situação atual da RDD é um exemplo que demonstra a importância da agricultura familiar na sustentabilidade de um território, mas também um exemplo de como a atividade agrícola necessita de encontrar formas de quantificar e valorizar a sua multifuncionalidade quando esta se traduz efetivamente num serviço prestado e necessário para a sociedade.

Promover os mercados locais

Um dos maiores dramas atualmente experienciados pelos agricultores é a dificuldade de valorizar os seus produtos no mercado, é muito frequente a prática de preços inferiores aos custos de produção para todo o sector agrícola. Esta situação é consequente da combinação de dois fatores: 1) a liberalização dos mercados de bens alimentares internacionais; 2) a destruição dos mercados locais pelo crescimento das grandes cadeias de distribuição – com destaque para a Jerónimo Martins e a Sonae, representa cerca de 75% do mercado nacional de bens alimentares. O crescimento destas cadeias alterou as relações de forças comerciais entre a produção e a distribuição, com esmagamento dos preços pagos aos produtores, pois estes não têm mercado alternativo. Sempre que a grande distribuição é confrontada com uma subida de preços recorre à importação de produtos provenientes de países onde os custos de produção são mais baixos, provocando a descida de preços. Do pondo de vista ambiental as consequências desta situação são desastrosas, devido aos danos acrescidos pelo transporte de longa distância, mas também pelo impacto gerado ao nível da exploração e gestão dos recursos locais – ex: os agricultores tentam reduzir custos de produção à custa de sobreexploração de recursos para se manterem no mercado.

Em consequência das elevadas margens aplicadas pela distribuição a baixa de preços ao agricultor não se tem feito sentir com a mesma intensidade ao nível do consumidor, que muitas vezes é confrontado com preços demasiado altos, limitando o consumo.

A promoção e o crescimento dos mercados locais possibilitaria uma maior capacidade de negociação por parte da produção, com subida de preços pagos ao agricultor e uma maior fragmentação da cadeia de abastecimento, beneficiando os meios de distribuição com maior proximidade entre a produção e o consumo, resultando assim numa maior integração dos agricultores no mercado. Também as centrais agrícolas e organizações de produtores que concentrem maiores quantidades de produto beneficiariam com esta alteração. Possibilitaria ainda uma maior participação da população local na cadeia de valor, com ganhos quantitativos e qualitativos ao nível do emprego.

Intervenção realizada no II Fórum do interior (7/8 de novembro de 2014)

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Vicente
Engenheiro agrónomo

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