domingo, 30 de agosto de 2015

A vinha, o vinho e a aguardente velha que lisboa esconde


por Pedro Sousa TavaresHojeComentar

A vinha, o vinho e a aguardente velha que lisboa esconde
Fotografia © Gustavo Bom / Global Imagens

As romarias de voluntários às vindimas do Instituto Superior de Agronomia já são um ritual de verão para muitos lisboetas. Algumas uvas, como a Moscatel, são ali vendidas para consumo. Mas e a restante produção? Parte é vendida a uma empresa e já valeu prémios. A outra é vinificada na adega do Instituto, onde aprenderam muitos mestres.
Pedro Mateus é alto para os seus 12 anos. E o tamanho ajuda quando é preciso chegar aos cachos mais altos. Clara, a irmã de 9 anos, compensa os centímetros a menos com esforço: "Já começou a cortar os cachos há um bocado. Ontem esteve mais a ajudar-me com o cesto", declara o rapaz, com a experiência acumulada de dois dias de vindima.
Filhos de Maria do Carmo Alves, funcionária administrativa do Instituto Superior de Agronomia (ISA), estão entre os últimos resistentes de meia centena de voluntários que, num dia e meio, colheram a quase totalidade dos 1,7 hectares de sete castas de uva branca plantadas pelo Instituto, junto à Calçada da Tapada. "O Pedro gosta muito de tudo o que tem que ver com os animais e com a natureza. E como trabalho nos serviços pedagógicos, ele aproveitou para saborear cada momento". Não foi o único.
"Felizmente não nos faltaram voluntários, porque ajudam muito. Especialmente num ano como este, em que tivemos mais produção do que esperávamos", explica Ângela Batista, chefe da equipa da parte agrícola da Tapada da Ajuda. "As pessoas vêm porque querem mesmo fazer isto. Acham engraçado, recordam os tempos de juventude, trazem os filhos e os netos para experimentarem. Em contrapartida, oferecemos um almoço da vindima, uma "box" de cinco litros aqui da vinha e os nossos agradecimentos eternos. Alguns voltam todos os anos."
Entre os voluntários há uma ausência notória: os próprios alunos da instituição. Mas Jorge Ricardo da Silva, professor de Enologia no mestrado de Viticultura e Enologia, tem uma explicação: "Não se veem muitos alunos aqui, por esta altura, porque estão a fazer o estágio da vindima e adega nas empresas. Estão a estagiar com produtores de norte a sul do país", conta.
"Aliás", acrescenta, "a capacidade de mobilidade dos alunos hoje em dia é extraordinária", constata o professor, há quase 30 anos na instituição. "Aproveitam o hemisfério sul e o hemisfério norte [para as aprendizagens nas empresas]. Agora, fazem o hemisfério norte e em janeiro, fevereiro, vão para a Nova Zelândia, para a Austrália, para a África do Sul.
Cerca de 20 alunos concluem por ano o "mestrado português", oferecido em parceria com a Universidade do Porto e o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária. Outros 25 formam--se num diploma conjunto oferecido por este consórcio e várias instituições europeias: "Politécnica de Madrid, Montpellier, Bordéus, Geisenheim, na Alemanha, e depois em Itália duas grandes universidades - Udine e Turim".
As origens dos alunos são diversificadas. Desde o país de nascimento - metade dos que vão começar o curso no novo ano letivo são estrangeiros - como nas formações de base que os levaram até ali. "Muitos têm um primeiro ciclo em Engenharia Agronómica ou Alimentar. Mas há uma grande tradição de os mestres poderem vir de outras áreas. O Aníbal Coutinho, hoje jornalista de vinhos, é da área da Engenharia Civil e foi aluno desta casa. Já tivemos médicos, médicos veterinários, biólogos, químicos... há uma procura de alunos de diversas áreas."
A "empregabilidade" é alta entre os diplomados, portugueses e estrangeiros, e o professor tem dificuldades em escolher alguns nomes entre as "centenas" de ex-alunos que estão a ter carreiras de sucesso ligadas ao vinho: "Há imensos. Até tenho medo de ferir alguma suscetibilidade mas posso dizer alguns nomes: o Bernardo Cabral, da Companhia das Lezírias, o António Maçanita, o Frederico Vilar Gomes, na Quinta das Conchas, e a equipa do Dão, da Vines and Wines, formada por três sócios - João Paulo Gouveia, Carlos Costa e Silva e Miguel Oliveira. Todos foram nossos alunos."
Produção para consumo interno
A juntar ao sucesso dos seus alunos, o ISA também se orgulha da qualidade dos seus produtos. Além da uva de mesa (Moscatel e galega), destinadas ao consumo direto e vendidas (baratas) a todos os visitantes), são produzidas outras cinco castas de branco - Arinto, Encruzado, Viosinho, Alvarinho e Macaben, além de quatro de tinto - Syrah, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional e Trincadeira -, todas elas convertidas em vinhos novos numa adega moderna, integralmente remodelada em 2012.
O vinho do ISA não pode ser vendido ao público - devido às restrições em relação à produção e comercialização de bebidas alcoólicas. Uma condicionante que, diz, é partilhada "com universidades do mundo inteiro, que têm o mesmo problema", mas que ainda assim deixa o sabor agridoce de sentir que se tem um produto de qualidade que não pode ser comparado com as marcas que estão no mercado. Os juízes - únicos clientes autorizados - são os funcionários do Instituto e outras pessoas ligadas de alguma forma à instituição. E, a avaliar pelo bom escoamento da produção, aquele vinho lisboeta faria sucesso nas prateleiras dos supermercados.
"Em termos de qualidade, há o antes das obras e o depois das obras. O vinho anterior tem uma qualidade standard. Não era nada que nos envergonhasse mas não tínhamos frio, que hoje em dia é indispensável. Improvisávamos com chuveiros de água mas não é a mesma coisa", explica. "O pós--obras, o Viosinho que temos aqui, feito numa das sete castas brancas, à francesa, com bâtonnage, se estivesse engarrafado já estaria numa gama médio mais."
Outro exemplo dos padrões elevados de produção é uma aguardente vínica. Um produto que já existe "provavelmente" desde a criação da própria adega do ISA, há quase um século: "Orgulha-nos muito. Estagia em média 14 a 15 anos. Tudo é natural, não há qualquer correção de cor, caramelo... é tudo o que sai da madeira", diz o professor, apontando para um amontoado de barricas de madeira: "É a madeira onde envelhece o conhaque, o carvalho francês de Limousin. Mas também utilizamos o carvalho português que existe, por exemplo, nas florestas da Guarda, do Gerês, e é uma madeira excelente".
Em algumas pipas, à espera de serem engarrafadas, repousam aguardentes que chegam a ter 17 anos. Jorge Ricardo não faz ideia sobre qual seria o valor daquela bebida se chegasse ao mercado. Até porque não existem muitos termos de comparação. "São poucas as aguardentes no mercado com 14 anos ou mais, que envelhecem naturalmente. Em Portugal ou em qualquer outro local."
Uma coisa é certa. Apesar de não poder entrar no circuito comercial, a bebida já convenceu alguns dos peritos mais exigentes: "O que lhe posso dizer é que temos de vez em quando visitas de muitos colegas estrangeiros, que conhecem os conhaques, os Armagnac, inclusivamente colegas de conhaque, que provaram esta aguardente e gostaram muito."
Apesar das restrições à atividade comercial, as uvas já entraram no circuito. E com bons indicadores. Em 2012, devido às obras na adega, o Instituto vendeu boa parte da sua colheita de uvas brancas à Casa Santos Lima, um grande produtor da região de Lisboa. O resultado foi um vinho adequadamente batizado de "Experiências". A produção de 2013 já ganhou quatro medalhas nacionais e internacionais, incluindo o bronze nos Decanter World Awards deste ano. A parceria continua este ano. "O vinho é feito em empresas. Mas a matéria-prima, as uvas, vêm daqui. E isso reflete já os cuidados que foram tidos em termos de viticultura", diz.
A colaboração com as empresas estende-se a outras áreas. Nomeadamente ao teste e desenvolvimento de novos produtos com potencial comercial. "A nossa carreira tem três componentes: docência, investigação e atividade experimental e a ligação com o exterior, através da prestação de serviços", confirma. "Tem sido tradição fazermos esses trabalhos; o produtor que quer testar uma nova enzima, uma nova levedura, uma máquina", diz, apontando para um aparelho complexo num dos recantos da adega: "É uma máquina de desalcoolização por nanofiltração, que é uma tecnologia muito interessante."
A adega pode ser visitada gratuitamente em qualquer altura do ano. E as vindimas regressam já em setembro, com um hectare de uva tinta para apanhar.

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